quarta-feira, 11 de outubro de 2023

Ler no tempo


Qual trilha sonora impecável, tudo permanece gravado nalgum equipamento do Universo. Tudo, sem exceção, ali sobrevive na mesma intensidade com que se viveu. Horas sem fim de gravação ininterrupta resiste ao desaparecimento e preserva todas as vivências, sobretudo que se dão no sentimento. Uma saudade guardada sobre as demais une a gente ao todo e fixamos nas horas nesse mapa de eternidades.

Vezes sem conta nos deparamos conosco noutras chances e as emoções nos dominam por dentro, a demonstrar que ainda existem na mesma proporção original. Matéria de estudo das existências, repassamos, tantas vezes quanto necessário, o caldo desse conteúdo enigmático. Ele que fervilha intenso feito seres em atividade inextinguível, a recontar o que houve naqueles instantes antigos, pela busca de atualizar sempre as consciências.

A impressão que predomina é de sermos dois, invés de um só. Enquanto caminhamos agora, passo a passo outro eu nos acompanha no que vivemos lá antes, a impor coerência à atualidade. Isso identifica as saudades de outras vezes sem conta. Vêm personagens, vivências, situações as mais diversas, num caleidoscópio infindável. Em um retrabalho constante, fazemos disso novos significados e resistimos ao furor desse caldo fiel que cresce à medida do tempo vivido.

Quantas ocasiões, e me vejo na primeira infância, na fazenda onde nasci, em Lavras da Mangabeira; noutras, na minha vida em Crato, durante a segunda infância e adolescência; nos idos de Brejo Santo, quando trabalhei por quatro anos; na sequência posterior, em Salvador, em Crato, de novo; nas viagens que fiz onde andei; e os diversos momentos, livros que li, filmes vistos, histórias ouvidas; as amizades; os cursos, reuniões, participações políticas, os relacionamentos familiares; tudo bem preservado, intacto, pedaços reunidos de mim que atravessam incólumes o transcorrer das estações.

São esteios nítidos do que sou, numa correnteza insistente, força inesgotável dos céus na alma, nos dias. Com essa matéria prima agora me reconstruo gradativamente, tal quem aprimora o senso da Natureza no íntimo, e nisto preencho o barco de minha história à luz do que aprendo e pratico, do que vivo e obtenho dos frutos acumulados, no silêncio do Infinito.

(Ilustração: Sucatas eletrônicas (reprodução).

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