sexta-feira, 11 de agosto de 2023

Nesse mar de palavras


Primeiro, vieram os objetos; depois, os nomes que lhes atribuímos. Assim, desde agora, somos meros detentores de pensamentos em movimento que viram palavras; enquanto as palavras detêm os acontecimentos em volta de todos. De primatas das palavras passamos a delas seus cativos, cercados de objetos quais ilhas isoladas em um mar convulso de onde renascem outras palavras e outros pensamentos. Quais vulcões desses desejos de domínio, somos tais cavaleiros andantes à procura da sorte, de que falam as palavras a essas submissas criaturas de nossas invenções e joguetes das ilusões que nós mesmos elaboramos tão logo despertos, dias e dias sucessivos.

Vagos autores dessas realidades individuais, tangemos além o horizonte, na medida dos nossos passos e desejos, objetos de palavras que não mais nos pertencem e a quem venham a pertencer ninguém sabe. Noutras palavras, sujeitos esquisitos de caprichos impostos por nós próprios, dos rios que chegam todo tempo a esse mar e nos alimenta de sustentação, até um dia sabe-se lá quando e como, abstrações que sumirão na matéria do Infinito.

Criamos conceitos e sustentamos a vontade esdrúxula de ser o que bem gostaríamos, contudo bem aquém das nossas forças. Parceiros de bilhões de outros destinos paralelos ao nosso, deslizamos através da realidade pelos roteiros que imaginamos, porém longe, longe, do que signifiquem um pleno acordo com o sentido de tudo da natureza original que queremos conhecer.

Durante o período desse itinerário misterioso, conduzimos os indivíduos solitários por vezes a lugares inexistentes, criados ao sabor das impressões adquiridas nas palavras e nos pensamentos. E o que seja mais sério ainda, arrastando outros aos iguais solares de aflição forjados pelos nossos caprichos e delírios. Numa espécie de fantasia autoimposta, multiplicamos essas produções ao todo da Humanidade no formato das histórias contadas e sacrificamos a muitos por meio de supostas qualidades, que só se desfazem à medida dos séculos, acondicionadas em sarcófagos e monumentos, lixões e bibliotecas, nada que represente outro qualificado da fome vigorosa de transmitir aos céus sinais da pura imaginação que nos trouxe de dentro do nada até aqui.

(Ilustração: Narcissus, de Caravaggio).

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