terça-feira, 23 de março de 2021

Horas mil em um tempo de ficção

 


A condição de se saber aqui neste chão das almas implica nisso, de sobrevoar a existência e querer dela fugir, qual quem foge da realidade. E nada mais misterioso do que essa realidade fria, artificial, e seus instrumentos de voo, peças soltas no ar das florestas em movimento nas pessoas e nas coisas, módulos e naves que flutuam pelas artérias do destino. Quantos segredos assim são revelados a todo instante. Cores. Formas. Luzes. Pensamentos e sentimentos. Entre eles, duas extremidades inconstantes, corre este rio das evidências, no entanto isolado pelas sombras que as escondem, pessoas que fogem de si e, aflitas, mergulham na imaginação de ser só, ninguém, de atravessar a linha do horizonte e desaparecer lá além, na consciência intocada. Sonhos. Visões. Abstrações. Medo. Ficção.

Módulos, deixados no tempo que agora nem existe mais, fixam raízes na solidão, tais puros saltimbancos de verdades que a eles parecem representar o senso e mesmo assim as evitam, porque representam valores da essência e os transformam nos encapuzados vadios da escuridão, vilões do sol, e nisso adiam até nem poder ao encontro dessas linhas paralelas, pensamentos e sentimentos. Enquanto os primeiros carregam nas tintas de criar ilusões, os segundos amarguram o que poderiam de amar e não deixam isto acontecer, o sentimento maior, a fim de atender aos instintos originais e vencer de tudo os primeiros, titulares perdidos em noites antigas. Uma queda de braços, pois, desses dois personagens, que desejam dominar o ator principal no ser que o somos, no entanto pura criação de sentenciados ao nada desde sempre, e querem a qualquer custo tomar o lugar, fornecendo amores impossíveis nas paixões desenfreadas.

Portanto, há infinitas horas de mergulho nas profundidades desta ficção, no largo período de espera sem fim na casa da humana paciência. Durante o percurso do longo itinerário, nesse esforço de construir inexistências, aqui permanecemos lado a lado com nossos algozes, senhores ainda escravos dos próprios caprichos, na função soberana de aprender a amar os inimigos, meros coadjuvantes de um zigzague febril, experimentos da multidão de prometeus dos rochedos, nas horas mortas. Ali, no íntimo dos céus, riscam distantes estrelas, no coração dos que vivem e confiam.

(Ilustração: Aquiles, o herói por excelência, de Arnóbio Rocha).

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