sábado, 30 de janeiro de 2021

Fideralina Augusto Lima - Por: Rejane Monteiro


Dos diversos instrumentos do homem, o mais assombroso, sem dúvida, é o livro. Os demais são extensões de seu corpo. O microscópio, o telescópio, são extensões de sua vista; o telefone é extensão da voz; depois temos o arado e a espada, extensões de seu braço. Mas o livro é outra coisa: o livro é uma extensão da memória e da imaginação
. (BORGES, 2011, p.11)

Distante, até onde minha mente alcança, vejo o seu olhar sisudo e irrequieto, um sorriso pequeno e triste. Vestido comprido, xale com franjas sobre os ombros, sentada numa cadeira de balanço no alpendre do Tatu. Bacamarte do lado e um outro adiante, no peitoril da janela. Fogueira ardendo no terreiro, um pouco distante da casa, iluminando desde os menores movimentos dos cabras armados, com cartucheiras atravessadas ao peito, ao dos negros escravos que procuravam abrigo na senzala. Ali faltava Ildefonso, há pouco tempo falecido. "Ali estavam seus doze filhos, os mais velhos com 23 e 22 anos de idade e os menores com 6 e 8 anos" (CEARÁ, 1877). Ali, o alvoroço de pensamentos, planos e incertezas, a sacudirem a paz e o silêncio de Fideralina.

Difícil imaginar a nova face do seu ego em eclosão, até então latente. Como animal acuado, que rompe a corrente que o prende, tem ânsia de luta, tem garra, tem coragem para enfrentar a situação que a surpreende. Tem visão e sensibilidade. Mãe e educadora exemplar, prega aos filhos o respeito e o acatamento às determinações, que deveriam nortear sua conduta. Projeta-se neles, mantendo-os nos melhores colégios e cursando a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, filho e neto, enquanto inicia os menores nos bancos da escola na vila e cidade de Lavras. Elege-os deputado provincial, deputado federal e deputado estadual. Reveste-se de mulher política. Destaca-se no cenário do Estado por influência do voto dos comandados, que alimenta seu prestígio no Governo, fortalecendo a liderança política em Lavras e no centro-sul do Ceará. Os chefes dos municípios, seus pares, "andando sempre armados, vários deles, onde quer que estivessem ou aonde quer que fossem, acompanhavam-se de cabras, igualmente armados, para os quais, nas próprias residências dos coronéis, havia dependências reservadas" (MACEDO, J., 1990, p. 37)  "Como verdadeira coronela do sertão, tinha que andar armada e protegida por gente guerreira. Também, devia dispor de um arsenal de armas e grande quantidade de munição" (PAIVA, 2008, p. 71).  Assim, reina no grande feudo que recebera de herança do pai e do marido, conseguindo manter-se no poder político por força das armas. Punhal e bacamarte, extensões do seu braço, sabia usá-los, para defesa, como ninguém. Leal com os amigos, impiedosa com os inimigos, imprime deferência e autoridade, gozando da confiança dos influentes e poderosos coronéis. Em seus embates, sucessivas vitórias. Não viu o fim da oligarquia que implantou, por sinal, uma das mais duradouras do Ceará. Desse modo, "não entrou na História por grandes desafios e conquistas em tempo curto. Entrou, sim, porque participou das lutas pelas transformações políticas e sociais do Ceará durante sua longa existência". (GONÇALVES,1991, p.31)

"Aos 16 dias do mês de janeiro de 1919, faleceu em sua residência, na rua Major Ildefonso, cidade de Lavras, Dona Fideralina Augusto Lima, viúva  do Major Ildefonso Correia Lima" (CEARÁ, 1919). Falecida aos oitenta e sete anos, recebeu os sacramentos da Santa Igreja. Seu cadáver amortalhado em hábito preto, foi sepultado no cemitério público de Lavras, conforme termo assinado pelo Vigário Monsenhor Meceno Clodoaldo Linhares.

Um século com a memória de DONA FIDERALINA AUGUSTO LIMA

A figura de Fideralina perdura no tempo, na memória coletiva de várias gerações e atravessa um século. Certo é dizer que continua mais intensamente entre nós, mostrando-nos a evolução dos fatos históricos, dando-nos testemunho do papel de mulher guerreira que se destacou na sociedade machista e patriarcal. Depois de um século, ainda se procuram respostas e razões para uma vida cheia de surpresas e contrastes, de atitude subversiva em torno dos costumes da época em que viveu.

Com inteligência e sabedoria, passa aos filhos e netos o bastão da caneta, e deixa como legado o estudo, a literatura, o livro, extensões da memória e da imaginação. "O bacamarte e a caneta ela os transmitiu para os filhos e netos, mas o cruzamento desses objetos e símbolos do poder tornaram-se também a representação do Município de Lavras". (MACEDO, D. 2017, p.146)

Por que, nesses cem anos, mais livros registram sua história, mais histórias são criadas pelo imaginário? Surpreendente o número dos que buscam compreendê-la e estudá-la nas rodas acadêmicas, nos grupos de pesquisa, em monografias. "Extensas são as crônicas históricas ao seu respeito desde Raquel de Queiroz a Cego Aderaldo, que escreveram e cantaram suas aventuras e bravuras por todo Nordeste brasileiro" (COUTO, 2018 p. 27). No ano de 2013, o III Cariri Cangaço, capítulo de promoção periódica da Sociedade Brasileira do Cangaço, incluiu em sua programação oficial uma visita ao Sítio Tatu. "Essa entidade de pesquisa antropológica, envolveu nesse ano de 2013, estudos da força marcante de Dona Fideralina Augusto Lima, a matriarca da família Augusto, nos capítulos da ancestralidade cearense". (MONTEIRO, 2016, p.117). Que o diga Dimas Macedo, a disputa de memória em torno de Dona Fideralina Augusto está ainda começando. É fato que já existem trabalhos fundamentados em pesquisas e tradição, que têm preenchido lacunas no seu conhecimento, como é certo que é inseparável sua história das lendas e fantasias criadas com seu personagem. Enfim, todo o conhecimento que se tem sobre a líder política singular dona Fideralina é assaz pequeno diante do que representa o desconhecido. Mas temos a esperar e veremos, por estudos científicos, "às luzes da Ciência Política e da Sociologia Política" (MACEDO, D. 2017, p.166) que sua memória viverá em outras gerações, por mais séculos, também consagrada nos livros que hão de vir.

"Dona Fideralina, ainda hoje, anda na boca dos cantadores". O folheto de cordel e a cantoria têm consagrado seu nome e sua história ao longo do século. Não poucos poetas repentistas têm cantado sua memória e levado aos admiradores da Literatura, com a riqueza de expressão própria de cada um, o encanto de uma vida que deixou marco no final do Século XIX e início do Século XX. Rimas e versos da poesia popular imortalizam o nome da mulher guerreira que hoje compõe o lendário cearense: "Tudo era cronometrado/ não fazia nada à toa/ carrasca para os inimigos/ para os amigos era boa/ insultada era uma fera/ outros diziam que ela era/ uma rainha sem coroa" (TELES, 2013, p. 5). É do poeta Geraldo Amâncio: "Desse clã uma mulher/ é o vulto mais notável,/ de uma resistência incrível,/ de bravura incomparável,/ é Dona Fideralina/ uma força feminina/ até hoje inigualável" (AMÂNCIO, 2018, p.5).

Quanto a sua descendência, sente-se feliz e orgulhosa de fazer parte dessa grande árvore, desse complexo imenso de filhos, desse corpo vivo, secular: família Augusto Lima, árvore de raízes profundas. Sua descendência, por longo tempo, ocupou Cadeira de prefeito municipal de Lavras e tem ocupado nos diversos municípios nordestinos, assim como sempre ocupou e ocupa na Câmara Federal, Estadual e Municipal, além do Senado, e  com destaque no meio artístico, científico e intelectual. Numa demonstração de fidelidade aos anseios da Matriarca, há cem anos falecida, seus descendentes têm tido consciência da responsabilidade de ir repassando às gerações que surgem o bastão da caneta e da política.

Fortaleza CE, jan. 2019.

Rejane Monteiro Augusto Gonçalves

BIBLIOGRAFIA

AMÂNCIO, Geraldo. Fideralina Augusto: a matriarca de ferro. Fortaleza: Expressão Gráfica, 2018, 21 pp.

BORGES, Jorge Luis, 1899-1986. Borges, oral & Sete noites/Jorge Luis Borges; tradução Heloísa Jahn.  São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

CEARÁ. ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO. Certidão [de] Inventário [de] Ildefonso Correia Lima. Emitida em: 15 set. 2000. Cartório de Lavras, 1877. Processo n. 31, Pacote n. 13. Inventariante: Fideralina Augusto Lima. Inventariado: Ildefonso Correia Lima.

COUTO, Cristina. A Tragédia de Princesa: o caso Ildefonso Augusto de Lacerda Leite. Fortaleza: Expressão Gráfica, 2018, 183 pp.

GONÇALVES, Rejane Monteiro Augusto.  A Vocação política de Fideralina Augusto Lima, Fortaleza: IOCE,1991, 37 pp.

CEARÁ. ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO. Certidão [de] Inventário [de} Fideralina Augusto Lima. Emitida em: 15 set.2000. Cartório de Lavras, 1919. Inventariante Gustavo Augusto Lima. Inventariada: Dona Fideralina Augusto Lima.

MACEDO, Dimas. Dona Fideralina Augusto: mito e realidade. Fortaleza: Armazém da Cultura, 2017, 181 pp.

MACEDO, Joaryvar. Império do Bacamarte. Fortaleza: Casa de José de Alencar Programas Culturais-UFC, 1990, 274 pp.

MONTEIRO, Emerson. Histórias do Tatu. Crato: Gráfica Ideal, Cajazeiras PB 2016,154 pp.

PAIVA, Melquíades Pinto. Uma matriarca do Sertão: Fideralina Augusto Lima (1832-1919), Fortaleza: Livro Técnico, 2008, 156 pp.

TELES, J. História versada sobre Dona Fideralina Augusto Lima. Lavras da Mangabeira: Edição do autor, 2013.

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