quinta-feira, 24 de outubro de 2013

O valente Canguçu

Virara rotina no meio da garotada o jeito de ganhar ingresso para as sessões noturnas do Mundial Splendor Circus, que de grande mesmo só possuía no nome. A tarefa que cabia era ensacar os vira-latas da redondeza e levá-los, no silêncio das madrugadas, a uma das barracas atrás da empanada principal, discutir peso com o domador e transformar nas entradas da noite a mercadoria recolhida nas ruas e nos quintais.

Desse modo eles apuravam a ração do Rei dos Animais, leão posudo, atração maior dos espetáculos, a passar o tempo de olho nos bichos que avistasse por entre os ferros grossos da jaula, enquanto os esperava nas refeições. Cena ligeira, a população canina minguava dia a dia.

Os donos dos cachorros roubados, caso imaginassem o desaparecimento dos seus fieis amigos, quase nunca reclamavam deles desaparecerem na barriga do cruel leão africano.

Nesse ritmo as coisas transitavam na praça apinhada de gente cada sessão, a semana inteira, da segunda ao domingo. Até que chegou a vez do pequeno Canguçu, farejador inseparável das pertenças de João Boa Sina, caboclo da agricultura, ocupado nas lidas fora da cidade a dar de conta dos deveres. Família numerosa, renda aperreada, aonde fosse levava o cusco, de rabo feliz, os dois acima e abaixo, na vida escoteira dos longes e pertos distritos.

Com agrado, fácil, fácil, os moleques prenderam o inditoso cão conhecido pela valentia nos confrontos do subúrbio; nem nisso foi reconhecido pelos meninos ingratos, constantes admiradores seus. Aquele amigo da moçada rápido serviria no mercado das entradas, no escondido das tendas. Negociado, teria destino a goela do rei guloso.

Porém, um dia a roleta gira diferente. Quando jogado na jaula, Canguçu negaceou o corpo, num traço de mestre, e conseguiu escapar do primeiro bote da fera enjaulada. Passando por baixo das patas dianteiras do feroz, manobra mais de gato que de cachorro, num relâmpago se voltou por cima da crina dourada e abocanhou o pescoço peludo que ali aparecia, mordendo qual ferrão, com a força que grudou os dentes afiados nos debaixo da juba. 

Trincou com vontade titânica, e trancou seguro, no desespero daquela causa derradeira, talvez, sim, talvez, não escapasse. 

Vai lá, vem cá, o leão sacudindo a cabeçorra, pulava, virava, mexia, gemia, saracoteava, sem conseguir recompor a majestade selvagem ameaçada. As presas haviam ferido um nervo importante, nisso complicando o bem-estar do carnívoro. 

Urros, grunhidos, sopapos; algo fora do normal se estabeleceu na redondeza de sete léguas.

Os tratadores logo correram a chamar o proprietário do empreendimento, que jogava sinuca num bar das imediações. O movimento sacudiu de novidade o boteco, donde a turba também rumou na direção do circo, já reunindo bom número de curiosos naquela mistura de cachorro e leão.

Nada de solucionar a peleja, pois o gigante Golias parecia já querer amoquecar diante do pequeno David improvisado. As primeiras marcas de sangue respingavam o chão da gaiola. Restava pouca ou nenhuma alternativa ao manhoso felídeo. 

Aberta a grade pelo dono apreensivo, na mesma hora o animalzinho valente só fez mirar o lado de fora e chispar qual foguetão no meio dos que formaram a rumorosa torcida. Ganhou o mundo que nem bala, num risco só.

Depois daquela cena, os meninos perderiam a boquinha, pois o Rei dos Animais se enfastiou da carne canina a ponto de refugar até mesmo os cachorros que passassem longe, na parte externa do circo. Reagia intranquilo, rugindo, grunhindo, reclamando apreensivo quando ouvia um latido distante. 

Ainda durante algum tempo, os populares da pequena cidade lembravam com gosto a coragem de Canguçu, cão minúsculo que livrara a espécie das presas enormes do voraz inimigo público.

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