quinta-feira, 24 de outubro de 2013

A cruz de Marciana

Ímpetos apaixonados envolveriam os dois cativos de fazendas próximas, na região dos Inhamuns, época da escravidão, tempos seculares do Ciclo do Couro, época das charqueadas do Sertão cearense. 

Da tempestuosa emoção restaria lembrança apenas de um nome, o dela, Marciana. Dele nem isso  perpetuaram do amor sem dimensão que assinalara a história contada por Antônio Teodósio Nunes, filho daquelas bandas.

A força do afeto que arrebataria os instintos na coragem de ficarem juntos não despertou reação favorável do proprietário da escrava Marciana, sobretudo, que nos princípios ainda deixou conciliar as oportunidades dos encontros fortuitos dos namorados, apesar dos elevados custos de sofrer perseguições repetidas, no preço das surras e prisões.

O romance ganhou corpo e espaço na boca dos habitantes da redondeza. Uma lenda de paixão e desejo assim avolumava comentários das casas grandes às senzalas. 

Várias fugas se tornaram conhecidas, porquanto os amantes jamais recuaram no propósito de casar um dia, ânsia de quem descobre no outro espelho de si mesmo, busca voraz dos corações entrelaçados.

O jeito que achou o dono da escrava para impedir a delinquência foi pear-lhe os pés com tiras de couro cru aguçadas, qual também com os bichos fujões, ou gado ladrão que arromba cerca para mudar de pasto, nas desobediências insistentes.

Estados de prisioneira alimentaram na jovem as intenções de liberdade e afeto. Rendeu-se no fazer de conta, fim de revelar horas convenientes de fugir das vistas sagazes do feitor. Demonstrou arrependimento, tristeza, gesto meloso dos dissimulados, o quanto poder. Conseguiu fingir acomodação, e lá bela noite se jogou de impulso selvagem nas malhas da vontade e sumiu caatinga adentro, no escuro estrelejado, doces sonhos de escuridão profunda do amor clandestino. 

Dias e dias passaram quando ninguém sabia notícias da jovem negra, pois o silêncio venceu a fome dos boatos, só a desconfiança imensa.

No fim de tarde pouco além, horas mormacentas de verão cinza avermelhado, nuvem sinistra de urubus levantou no meio de manga distante, entremeio das duas propriedades. 

Dado instante adiantado de quase noite, deixaram os agregados de ver melhor à luz do dia seguinte; talvez alguma rês tresmalhada perdesse a vida na mata.

O que encontraram, todavia, na manhã alta, corpo desfigurado, maltratado pelos bichos, Marciana danificada a bico das aves de rapina, exposto à claridade no calor das inclemências. A perda feriu o povo de solidão, um morrer de amor aceito na carne da cativa. E puseram bem ali, no lugar do achado trágico, pequena cruz de madeira onde divisaram dela a fisionomia apaixonada pela vez derradeira. Àquele canto viriam peregrinos, munindo flores e velas, reverenciar a forma dorida que terminou com o drama da Julieta cabocla, em promessas, milagres, devoção.

Do episódio nasceria o nome do povoado que, em volta da cruz rendilharia casas, origem da localidade batizada hoje de Planalto de Marciana, município de Arneiroz, Sertão do Inhamuns, Ceará.

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