quarta-feira, 8 de junho de 2011

O ferreiro de Barcelona (da tradição medieval)

As trevas da Inquisição cobriam a Europa de mártires e de terror. A Idade Média anulava os anseios religiosos da grande população, através de cruel intolerância, solapando liberdades civis qual peste sulfurosa. Durante o século XIII, cometeram-se ignomínias e atrocidades, penas que iam do confisco dos bens a execuções sumárias, torturas e outros castigos inimagináveis.

No auge de tudo isso, na cidade espanhola de Barcelona, existia um ferreiro afamado que ganhara a preferência dos executores na confecção dos requintados instrumentos adotados pela repressão impiedosa. Suas algemas mereciam mais respeito face ao primoroso zelo com que as manufaturava, sem existir quem pudesse superá-lo na qualidade. Cumpria de sobra as encomendas que viessem. De suas produções jamais alguém conseguiria escapar. Um profissional e tanto o ferreiro daquelas peças de trancar os perseguidos da oligarquia que avassalara esse período trágico, no combate das idéias renovadoras e escarmento de tantas vítimas.

Pois bem, esse homem se orgulhava disso: ninguém se livraria das suas tenazes; ninguém, quando preso, chegaria a fugir dos ferozes mecanismos.

O tempo, porém, justo e sobranceiro, guarda surpresas, na ronda dos aparentes ditames da humana monotonia.

Dias e noites passavam céleres, até que, durante uma festa de insistentes brindes, perante vasta multidão, o ferreiro, animado além do tanto nos assuntos do vinho, excedeu-se em palavras, deixando vazar segredos inconfessáveis, aos quais chegara por via do prestígio adquirido junto às cúpulas do Santo Ofício. Na carraspana, revelara segredos que lhe determinariam o destino próximo.

Coisa pior não poderia lhe acontecer. Caía, desse jeito, nas garras mortíferas do mesmo tribunal a quem servira com esmero. A equipe dos doentes espirituais, por meio de julgamento improvisado, cuidou da sua condenação, ficando desfeita velha aliança.
Após o pesadelo das primeiras horas, ele despertou desnudo, em solo úmido de infecta masmorra, colado a pedras ásperas. Sentiu nos pulsos crivos frios de metais enegrecidos. Entre dormido e acordado, buscou as esperanças do manuseio profissional dos mecanismos que o retinham de encontro à tosca parede da prisão.

Recobrou os sentidos para perceber (qual surpresa!), que se via atravancado nos pulsos e tornozelos por dois pares dos grilhões que produzira na véspera da comemoração onde perdera o domínio e sentenciara-se ao merecimento da justiça torpe que antes auxiliara exercitar.

Em seguida e desencantado, rendeu-lhe a espera do improvável, como ocorre perante situações assemelhadas, quando a medida com que medimos, medir-nos-á também a nós.

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