quarta-feira, 8 de junho de 2011

Fim e recomeço (da tradição oriental)

Dentre as inúmeras narrativas budistas que falam na busca incessante empreendida pelos discípulos através dos caminhos do mundo, em prol da suprema realização do Ser, uma existe que descreve com nitidez essa longa peregrinação de certo monge para encontrar a Verdade.

Desde bem jovem pusera-se nas estradas da Índia querendo encontrar Sidarta Gautama, o Buda. Com esse propósito sublime, viajou anos seguidos, exposto às aventuras improvisadas que a vida nômade oferece.


Numa radiosa manhã de luz intensa, viu-se ante as águas caudalosas do rio Ganges disposto a vencê-lo, pois entre os viajantes se dizia que nas terras da outra margem o Santo reunia vários discípulos e ministrava o Conhecimento, razão da procura exaustiva do incansável andarilho.

Depois de demorada negociação com um dos barqueiros temerosos de atravessar o rio perante a cheia intensa, iniciou a peleja arriscada de cruzar as águas pardacentas.

Já iam a meio passo do trajeto quando o religioso observou, rumando na direção do barco, fardo que boiava sobre as ondas revoltas do rio.

Mediante maior aproximação, percebeu surpreso cadáver emborcado de um homem. Então, fez-se mais atento e procurou identificar nos restos sem vida possíveis traços de alguém conhecido, tendência natural numa hora dessas.

Ao desemborcar o corpo, inquietou-o, contudo, ver no rosto do morto a sua própria fisionomia. Era de mais ninguém senão dele, portanto, o cadáver que, indiferente, vagaroso, descia o leito em que navegavam!

Num instante, inesperada angústia sacudiu-lhe as entranhas, isso de presenciar a si mesmo enrijecido, inerme, abandonado à correnteza.

Ato contínuo, perdeu qualquer domínio sobre seus modos e num berro monumental explodiu tétrica e sonora gargalhada, o que empalideceu de susto o barqueiro à sua volta, pressupondo haver o passageiro transposto as fronteiras que separam a lucidez e o desvario.

A seguir, em gestos semelhantes, ambos deixaram cair o corpo de encontro ao lastro da frágil embarcação, abandonados àquela cena que vivenciavam, atitude em que demorariam alguns longos minutos de torpor, sob o céu aberto de poucas e distantes nuvens fumarentas.

Ao término daquela ocorrência patética, extático, o monge vislumbrou no íntimo da alma que começava seu encontro de libertação com o Buda, a completar, quase por inteiro, logo nas próximas horas depois de pisar o solo firme da margem oposta e se dirigir ao recanto aonde o Mestre transmitia ensinos magnânimos.

Em definitivo, nesse dia efetivara o mais valioso passo da jornada espiritual.

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