domingo, 29 de julho de 2018

Livre só pensar

Qual quem mancha tecidos, assim é escrever. Manchar com tintas indeléveis, definitivas; escrever é assim. Largar aos borbotões o direito de ser só e silencioso, indolente. Contar daqui de dentro ali fora o que aconteceria nas malhas dos pensamentos impacientes. Dizer na pura intenção de permanecer além do tempo, lá nos meandros daquilo que apenas passava, e no entanto frenou o circular dos acontecimentos em um instante sólido, feito palha seca, porém palha e seca forrada de gestos e concretude. 

Quando havia, durante décadas, a coluna que Millôr Fernandes publicava na imprensa brasileira e assinava com o pseudônimo Vão Gogo, usava o subtítulo de Livre pensar é só pensar. Nisso, deduzia que pensar torna livres, se for livre o que só pensamos. Longe das amarras das repetições, lugares comuns, chavões e frioleiras. Pegar firme no jeito de reverter o quadro das acomodações e rotinas em palavras e frases a montar o movimento da fala em textos e construções. Usar da coragem de aventurar o escafandro da dúvida e percorrer o tecido que queira manchar sem o medo de perder o senso.

Isso tal qual escrever; ousar pelos territórios virgens do silêncio e saber que haverá, nalgum lugar distante, sobreviventes que leem. Avançar sobre a carne das palavras e retalhar ossos e nervos numa espécie de piratas das noites  escuras à busca dos galeões abandonados em que se transformou o vazio das letras caladas. Passo ante passo, e percorrer o destino das ideias a lançá-las feridas e sórdidas longe da inocência original. Fazer face às garras da previsão de sentido e ferir as telas e as tardes; contar em fúria o que nunca passaria de mero vômito do presente a cada imagem do que iria e jamais voltaria a ser de novo, não fosse audácia impetuosa dos que falam, contam, escrevem; dizer nas entrelinhas das ausências em queda livre as visões e os sonhos que testemunhavam inconformados em perdê-los.

Virarão depois em telas abandonadas a correr da pena e do tocar dos dedos nos teclados aquilo tão querido, fagulhas de vidas retemperadas, fervidas e enviadas a outros aventureiros da leitura, nesse mundo afora. 

Escrever, pois, espécie de repartir clandestino do pouco que somos em pequenos mercados de tintas e papéis deixados à margem dos firmamentos e guardados bem íntimo das horas eternas, fragmentos dos que feriram a exaustão da inutilidade e resolveram multiplicar possibilidades no dizer acontecer que viraram gritos de vontades e flores secas ao Sol.

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