quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

A lebre desprendida


No registro das lendas que contam vidas passadas do Buda existe a que conta sobre lebre jovem que habitava as encostas de afastada montanha, tendo por amigos uma lontra, um macaco e um chacal.

Ela se alimentava de ervas, folhas e frutos e tomava como prática viver sem prejudicar quem quer que fosse. Entre os outros animais, ministrava ensinamentos de como distinguir o mal do bem, passando suas aulas através de lições as quais transmitia com prazer.

No transcorrer do tempo, aproximou-se o dia da festa maior do lugar, época de receber visitantes que peregrinavam pelas matas. De acordo com os costumes, preparariam oferendas a esses destinadas, recolhidas nos encantos da natureza.

Enquanto outros bichos dispunham dos meios de elaborar brindes valiosos, a lebre, contudo, defrontava pobreza extrema, a dispor, na ocasião, de ervas e coisas de somenos importância a oferecer aos que visitassem a mata.

Indagada pelos companheiros do jeito que demonstraria sua gratidão e respeito, não mediu palavras e disse:

- Caso alguém me procure, não oferecerei ervas comuns, de fácil localização. Quero possuir dote precioso. Nisso, a mim mesma, meu corpo, valor único que possuo, darei de oferenda, pois ninguém retornará sem a devida atenção de minha parte.

Chegado o grande dia, pessoas vindas dos mais afastados lugares adentraram as matas para conhecer de perto seus moradores, um desses peregrinos sendo o próprio Sakka, a personalidade suprema do Poder, que vê os pensamentos que fervilham as consciências. Veio investido na figura de um simples brâmane e de pronto se dirigiu à toca da lebre.

Ao vê-lo, esta, ágil e prestativa, depressa falou ao visitante:

- Fizeste o melhor vindo à minha morada, pois quem me visitasse neste dia receberá o que de mais precioso possuo, e é isto te ofereço na linda festa de todos nós.

Olhos atentos, o brâmane observava os raros e pobres trastes que existiam na casa simples, interrogando a que a lebre se referia nas suas palavras acolhedoras. Daí, ouviu o que ainda acrescentava:

- O dom de que falo, e que pretendo oferecer do íntimo coração, sou eu mesma, meu corpo vivo que aqui vês, e que mereces inteiro, pela nobreza de tua dedicação ao Bem nas tuas ações puras e austeras. Por isso, junta gravetos para acender o fogo e preparar o teu repasto.

Mediante oferta tão decidida, o brâmane se movimentou, fazendo crepitar uma fogueira cujas chamas iluminaram o escuro da folhagem.

Em seguida, num gesto impávido, ligeiro, a lebre lançou-se no meio das labaredas crepitantes, como quem se atira no seio de águas profundas, atendendo a todos os anseios e dores da existência que vivera até então. O brâmane nem teve oportunidade para impedir a intenção contundente da sincera devota.  

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