terça-feira, 11 de dezembro de 2012

A vitrola


 Minhas primeiras lembranças musicais vêm do tempo em que vivia na fazenda do meu avô paterno, Amâncio Lacerda Leite, em Lavras da Mangabeira, pelos inícios dos anos 50. Ele possuía uma vitrola que ganhara das filhas que moravam no Rio de Janeiro. A novidade funcionava com sucessivas voltas da manivela de corda, repetida a operação para cada novo disco. Eram agulhas no tamanho de quase  polegada, super amoladas, que tocavam discos de cera de 78 rotações, uma para cada um.

Caixa feita em acabamento primoroso, envolta de percalina azul marinho intenso, vindo lá dos Estados Unidos. Lembro a marca, RCA Victor, por causa do símbolo daquele cachorro escutando música, parado na frente de gramofone ainda mais antigo.
O braço da vitrola donde provinha o som deveria pesar coisa de meio quilo, talvez mais. Seu peso correspondia ao atrito necessário de manter a agulha encostada no disco, causando chiado característico quase na mesma intensidade do acorde das músicas. Gastava que era uma beleza, estava rombuda ao fim das execuções. Por demais primitivo o processo se comparado aos recursos da leitura ótica de hoje.

Como dissera, nesse raro equipamento ouvi as primeiras músicas que tenho notícia, na minha infância. Delas algumas resistem nas entranhas da memória, alicerces das coisas que chegaram depois, nessa estrada de existir.

Asa Branca, Cigarro de Paia, Xote das Meninas, Paraíba Masculina e A Volta da Asa Branca, de Luiz Gonzaga, que atendiam em cheio o gosto dos da fazenda, temas daquele mundo rural das nossas vidas. Santa Teresinha e A Pequenina Cruz do Teu Rosário, de Carlos Galhardo. Dez Anos, de Emilinha Borba, que vibrava comigo acordes do amor romântico da saudade. Além de outras, de Augusto Calheiros, Orlando Silva, Vicente Celestino, Sílvio Caldas, Nelson Gonçalves, principais sucessos da época.

Havia algo de mágico, pois eu desconhecia rádio, carro, avião, telefone, televisão, luz elétrica, cinema, dinheiro, cidade. Pães de padaria chamavam pão do reino, raro de pouquíssimas vezes no nosso cardápio, quando vinha de Lavras ou de Crato. Meu mundo se resumia no universo do engenho, dos três açudes, curral, vazante sempre verde, vacas, ovelhas, roçados, noitadas alumiadas de lamparina, casa grande e seu chão de cimento queimando, rodeado de retratos grandes de santos e dos parentes austeros pelas paredes; dos leilões que minha avó promovia todo ano, a fim de limpar a capela com o apurado. Comboeiros passavam de vez em quando, no tempo das moagens, quebrando a rotina da estrada principal que cruzava a bagaceira, indo para as Caraíbas de Sancho Rodrigues.

Nossa casa ficava em um alto no lado nascente, defronte a frondoso pé de oiticica. Minha mãe, professora, passava horas costurando de uma máquina Singer instalada na varanda, enquanto cantava canções da época e tomava as lições dos filhos; dali  administrava os afazeres da casa e da família.

À noite, reservava-nos a vitrola esses momentos especiais. Com pessoas reunidas no claro sombrio dos fifós, meu avô, cara fechada de coronel dos matos, regia a festa. Escolhia os discos, e ouvíamos esses acordes distantes na poeira do tempo.

Desde quando os avós desapareceram, na década de 70, minha prima Lisieux levou consigo essa relíquia tecnológica do pós-guerra mundial. Espero que ainda mantenha sob os mesmos cuidados com que eles a conservavam.  

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