Minhas primeiras lembranças
musicais vêm do tempo em que vivia na fazenda do meu avô paterno, Amâncio
Lacerda Leite, em Lavras da Mangabeira, pelos inícios dos anos 50. Ele possuía
uma vitrola que ganhara das filhas que moravam no Rio de Janeiro. A novidade
funcionava com sucessivas voltas da manivela de corda, repetida a operação para
cada novo disco. Eram agulhas no tamanho de quase polegada, super amoladas, que tocavam discos
de cera de 78 rotações, uma para cada um.
Caixa feita em acabamento
primoroso, envolta de percalina azul marinho intenso, vindo lá dos Estados
Unidos. Lembro a marca, RCA Victor, por causa do símbolo daquele cachorro
escutando música, parado na frente de gramofone ainda mais antigo.
O braço da vitrola donde
provinha o som deveria pesar coisa de meio quilo, talvez mais. Seu peso
correspondia ao atrito necessário de manter a agulha encostada no disco, causando
chiado característico quase na mesma intensidade do acorde das músicas. Gastava
que era uma beleza, estava rombuda ao fim das execuções. Por demais primitivo o
processo se comparado aos recursos da leitura ótica de hoje.
Como dissera, nesse raro
equipamento ouvi as primeiras músicas que tenho notícia, na minha infância.
Delas algumas resistem nas entranhas da memória, alicerces das coisas que
chegaram depois, nessa estrada de existir.
Asa Branca, Cigarro de Paia, Xote das Meninas, Paraíba Masculina e A Volta da Asa Branca, de Luiz
Gonzaga, que atendiam em cheio o gosto dos da fazenda, temas daquele mundo
rural das nossas vidas. Santa
Teresinha e A Pequenina
Cruz do Teu Rosário, de Carlos Galhardo. Dez Anos, de Emilinha Borba, que vibrava comigo acordes do
amor romântico da saudade. Além de outras, de Augusto Calheiros, Orlando Silva,
Vicente Celestino, Sílvio Caldas, Nelson Gonçalves, principais sucessos da
época.
Havia algo de mágico, pois eu
desconhecia rádio, carro, avião, telefone, televisão, luz elétrica, cinema,
dinheiro, cidade. Pães de padaria chamavam pão do reino, raro de pouquíssimas
vezes no nosso cardápio, quando vinha de Lavras ou de Crato. Meu mundo se
resumia no universo do engenho, dos três açudes, curral, vazante sempre verde,
vacas, ovelhas, roçados, noitadas alumiadas de lamparina, casa grande e seu
chão de cimento queimando, rodeado de retratos grandes de santos e dos parentes
austeros pelas paredes; dos leilões que minha avó promovia todo ano, a fim de
limpar a capela com o apurado. Comboeiros passavam de vez em quando, no tempo das
moagens, quebrando a rotina da estrada principal que cruzava a bagaceira, indo
para as Caraíbas de Sancho Rodrigues.
Nossa casa ficava em um
alto no lado nascente, defronte a frondoso pé de oiticica. Minha mãe,
professora, passava horas costurando de uma máquina Singer instalada na
varanda, enquanto cantava canções da época e tomava as lições dos filhos; dali administrava os afazeres da casa e da família.
À noite, reservava-nos a
vitrola esses momentos especiais. Com pessoas reunidas no claro sombrio dos fifós,
meu avô, cara fechada de coronel dos matos, regia a festa. Escolhia os discos,
e ouvíamos esses acordes distantes na poeira do tempo.
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