quinta-feira, 15 de outubro de 2015

O dia em que a sombra resolveu se libertar

Também não seria fora de tempo e propósito. Talvez agisse de caso pensado. Há meses já dava sinais de impaciência disso de andar presa comigo aonde fossemos, sempre de olhos baixos no percorrer o chão e passear a marca escura do corpo que possuía quase nenhuma presença. Mancha ausente que deslizava pelo papel fosco dos dias, observava apenas os meus passos, de modo comprometedor, qual planejasse largar meus argumentos de lado e sair a uma carreira solo do existir. Ainda assim eu acreditaria pouco (nada, a bem dizer) que resolvesse deixar de fora dos seus projetos futuros a ligação dos dois que alimentamos vida afora, cruzados milhões de séculos até ontem.

Porém o tempo escorregava devagar pelos dedos das horas e preservei quanto pode minha autoridade sobre ela. Semelhante às empresas que trabalham com matriz e filial, nunca escondera a função do seu papel secundário no jogo de claro escuro das considerações eventuais. Haveria, sim, por dever de ofício, de aceitar de bom grado a pura condição da obediência cega aos ditames originais, relação clássica de objeto e projeção. Ninguém, que nasce a ser sombra, chegará às raias do estrelado. Por que insistir e querer ocupar o trono lá onde senta o rei nas suas audiências?

E foi desse modo. Ela arrastou período demorado na longa subserviência dos atores secundários no elenco das películas. Silenciava muitas vezes o desgosto de preencher meramente o desejo de espalhar as cartas e nunca jogar de vera. Contudo, acho que por instinto de afirmação, daquela companhia se daria por satisfeita. Jamais andara pelos becos da imaginação, ou até viajara nos sonhos da liberdade, o que revelar na tamanha audácia daquela ingratidão de largar o prospecto e mergulhar noutros mares das superproduções independentes.

Pois nisso de dar uma de professor competente, aluno exemplar dos especialistas em fugir, escolheu ocasião inadequada, quero aqui confessar. Sumiu sem deixar menor vestígio. Caso levou alguma lembrança, penso que nem disso cogitou, talvez no propósito firme de vencer melhor a solidão, no lusco-fusco da madrugada fatal. Bagagem, isso garanto que esqueceu. Conto as meias, camisas, outras peças de vestuário, calçados, manias, nenhuma falta nada que denuncie usufruir lá na estrada o direito de posse.

Enquanto aqui comigo quero considerar ser melhor sentir saudade do que transportar a dificuldade amarga do vazio e da ausência de um tudo.

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