Noventa, o chapeado, outro tipo indelével desse passado, empurrando uma carroça para transporte de cargas, sabia conversar com desenvoltura a propósito dos mais diversos temas, em tiradas filosóficas de humor que desafiavam o rotineiro dos dias. Morava no bairro do Seminário, onde, certa feita, fomos vê-lo. Atravessava uma fase de muita bebida, tendo, há pouco, voltado à faina do carreto após sofrer sério acidente (atropelamento e fratura numa das pernas). Exímio artista da palavra falada, distribuía satisfação ao povo.
Outra lembrança, Ramiro, que marcou momentos agradáveis, primeiro entre padres e internos do Seminário São José, com verve engraçada; enfatizava seu aspecto feio em histórias as mais divertidas e apreciadas, ainda agora merecedoras de registro. (Certa ocasião, voltando tarde da noite de festa em Juazeiro, fretou um carro de praça. No escuro completo daquele tempo, mandou parar na frente do cemitério, onde morava e trabalhava de coveiro, para ir buscar o dinheiro da corrida. Depois de longa demora, e acordando com longas buzinadas os moradores próximos, o motorista viu-se surpreendido com a informação de onde se achava, ao que exclamou: - Bem logo vi; com uma cara daquelas não podia ser deste mundo!).
Desapareceu nos fins da década de 70.
Dizíamos, a princípio, que as comunidades dispõem do seu panteão de figuras marcantes, nas várias épocas. Músicos, poetas, loucos. Artesãos, vadios, mendigos, contadores de histórias, profetas impacientes, hóspedes das sarjetas, marquises e bancos de praças, cantadores, andarilhos, anônimos da extra oficialidade, os heróis populares.
Infinidade de outros abordaríamos, por dever de justiça: Pedro Vinte e Um. Vanda. Doca. Anduiá. Expedita do Bode. Só Deus. Canena. Pereira Belém. Porrinha. Capela. Sorriso. Chupetinha. Antônio Cornim. Polícia. Cadeado. Atletas. Prostitutas. Aleijados. Jogadores de sinuca. De bozó. Camelôs. Pais e mães de família pobres e autênticos em sua aventura de viver a incerteza. Contradições ambulantes de um mundo errado, egocêntrico. Os gênios do vulgo, farrapos sociais, ferrões nas consciências culpadas que lhes passaram para trás, na vida social.
A eles, aos ídolos de nossa infância, nas calçadas, gafieiras, estações, esta homenagem, mesmo que nunca venham a nos incluir em suas conversas animadas, bondosas, sensíveis ao sofrimento alheio, nas contradições desconhecidas das massas, nos trechos biográficos dos becos solitários, que, de tão comum, desatinam e se desatinam.
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