Já transcorreram
décadas de quando morava na fazenda. Vida junto de uma natureza agreste guardava
características distantes do mundo de hoje nas cidades. Essa mudança do campo
ao universo urbano significou o que costumam chamar de transição do feudalismo
ao modelo industrial exportador, no Nordeste brasileiro.
Porém foi verdade real,
experimentada pela geração que cumpria missão de atravessar o choque cultural
inevitável do progresso, talvez face de marcas sentimentais profundas, tanto
nas famílias quanto na história individual. E os sintomas das tais
consequências retornam através dos sonhos, espécie de tratamento natural.
Vez por outra,
presencio emoções resistentes daquela época, lembranças dos bichos, dos
habitantes, lugares, matas; de invernos, sequidões, estradas desertas; moagens,
riachos, açudes; pescarias, diversões, acontecimentos ocasionais da
religiosidade; viajantes que passavam e pousava alguns dias; tipos esquisitos
dos andarilhos sem rumo; as noitadas prenhes de luas e muitas estrelas, de
brilho típico do sertão; as narrativas de aparições das visagens e os
ancestrais desaparecidos penados; a brisa fria das manhãs; o mormaço nos fins
de tarde; as flores coloridas e perfumadas, cultivadas nos jardins de minha mãe;
as quermesses de minha avó, nas datas da igrejinha; o canto dos pássaros e suas
evoluções nos céus do verão; o silêncio contundente; o calor do meio dia até
três, quatro horas das tardes causticantes; e os imprevistos.
Sim, os bichos,
animais de tração, de montaria, os bois de bagaço do engenho, as vacas de
leite, os movimentos do curral, chocalhos batendo pelo escuro misterioso das
madrugadas, latidos de cães tresmalhados, alvoradas alegres, torreões de nuvens
grandiosas, a formar imagens contundentes no firmamento longínquo. Sonhos pelo
ar livre da infância que sumiram remotos de um período infantil.
Contudo, o que toca
com maior força o teto dessas saudades corre nos rebanhos ovinos, carneiros,
ovelhas, marrãs e borregos que os meninos conheciam e batizavam.
Havia dois currais a
curta distância, um dos carneiros de meu pai e outro dos de meu avô, divididos
nas assinaturas das orelhas, perversidade que todo ano acontecia, cortes de
peixeira que sangrava o chão dos cercados e salpicava na gente. Independente de
acompanhamento, os bichos conheciam seus apriscos, e a eles se dirigiam na
volta do pasto aos fins de tarde, momento agradável de vê-los regressando à
segurança das casas, guarnecidos da onça e doutros riscos noturnos.
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