quarta-feira, 29 de março de 2017

Vidas vulgares

Feito rastilho de pólvora aceso dentro da noite escura, o irmão mais velho, em correria de ponta a ponta do bairro afastado, saiu a anunciar que acabara de nascer o novo sonho da família, messias da solidão do povo desconhecido, filho das agruras de pobre, neto de pobre, bisneto de pobre, no entanto dito por Dona Maria Lavadeira que trazia acontecidos inesperados, que daquela vez alguém viria no meio dos humildes de jeito inocente e promissor, esperança nova, porém desejo bem antigo da gente humilde, simples, sem força, de que, consigo, no ímpeto dos heróis, conduziria força suficiente de reviver o amor do povo pela vida.

Igual a tantas e tantas outras crianças, encheu de alegria o lar apreensivo e, um dia pela frente, sabe Deus quando, ao toque inevitável da trombeta da liberação, cobriria dos sinais dos séculos o clamor da salvação dos sofredores...


Tal qual naquele dia daquela noite bem festejada todo ano, cheios de júbilo, parentes e vizinhos alimentaram com vontade a chance de relembrar a tradição, e acalentou bem no íntimo o advento das luzes aos eleitos por intermédio de quem chegava junto deles cercado de carinho e extrema confiança.

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Nada disso, contudo, outros lembrariam ao retirar o corpo jovem, ainda arquejante, cravejado de balas, do meio das águas do rio turvo, às 22h da crua noite lá duas décadas depois. Olhares eletrônicos dos equipamentos fotográficos disparavam o indiscreto testemunho de registrar a ocorrência policial de rotina. Olhos fitos no absurdo da escuridão, o mesmo menino radiante das histórias alegres estava ali, que agora só carregava consigo herança trágica dos perdidos e das vidas provisórias, interrompido de chofre nos enquadramentos de tráfico das drogas, tentativas de homicídio, entradas na lei Maria de Penha, porte ilegal de armas, etc. Caricatura das inocências sonhadas em dias felizes, lacrava agora a esperança nova, porém desejo antigo de sua gente distante, assustada.  

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