sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Os penitentes

Naquela tarde de um dia chuvoso, percorrendo a distância entre a casa grande e nossa casa, acompanhado de pessoas adultas, ouvia qualquer comentário a propósito de que tal não era permitido pela Igreja; falavam como de algo em vias de se realizar, alguma coisa que tivesse a conotação de sacrilégio, porém de cunho inevitável. Enquanto isso, mostravam os vãos da calçada nua defronte à capela do sítio e suas paredes enegrecidas pelas marcas do lodo que escorrera do teto nas quadras raras dos invernos, antes que fossem feitas novas caiações. Pouco compreendi do assunto que abordavam. Recordo tão só, na ocasião, da presença festeira de alguns tetéus zoadentos, voando e pousando desarrumados no solo, para as bandas do engenho; nada mais.

Da casa em que morávamos, no alto de uma elevação do centro da propriedade de meu avô, vislumbrávamos uma das represas do açude grande. Ao lado, a menos de quatro dezenas de braças, situava-se a igrejinha, proporções monumentais aos olhos de criança. Quando anoiteceu, daquela vez, e chegou a hora de dormir, redes armadas, portas trancadas, candeeiros apagados, começou-se a ouvir dentro de casa, vindos pelas frestas de portas e janelas, e telhado, lamentos, cantos funéreos, litanias e os sons pesados da penitência.

Era Sexta-feira Santa, a data escolhida para executar o castigo. De cabeças cobertas pelos sacos de algodão cru, para esconder a identidade, camisas arreadas sobre calças de brim grosseiro, chinelos de couro curtido, os caboclos daqueles sítios latanhavam as costas com chiqueiradores de couro e pontas preparadas, ferros afiados e outros instrumentos de sacrifício, autopunição destinada, segundo eles, a resgatar o que os homens fizeram a Jesus, na Palestina. 

Do quarto onde dormíamos se podia ouvir com nitidez aquela função de sofrimento e lamúria, qual se ocorresse no terreiro de casa. Em meio ao escuro, as estocadas, os gritos e o choro sentido de homens, lapeadas monótonas dos relhos cruéis fundindo-se na via dolorosa, a produzirem impressão de terror e ameaça no sentimento de quem nada soubesse do que lá fora acontecia. Avisos de cerimônia esquisita, sem termos de comparação infantil, de um surrealismo macabro..  

Nenhuma explicação daquelas horas de angústia veio a ser ministrada de quem quer que fosse. Ficaram registrados apenas os acordes pavorosos da estóica dança, a se arrastar noite adentro, no rumo frio da madrugada sertaneja. Esses personagens rudes usam ainda nos dias dagora essa prática de cilício penitencial, num conceito arcaico de propiciação ao desconhecido, à eternidade, justiça da execução, na cruz, do Mestre divino, o que vim bem depois a conhecer.   

No dia seguinte, manhã logo cedo, levados pelos que cuidavam das crianças da casa, eu e os outros meninos observamos de perto o palco do drama encenado através das sombras noturnas. A calçada tosca da pequena capela via-se lastrada de manchas escuras do sangue derramado na véspera, entre as flores de malva braba e espinhos de carro-santo, as urzes do chão em volta, testemunhas impassíveis da coreografia exótica.             

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