quinta-feira, 10 de julho de 2014

O apito do engenho

Nos tempos da moagem, toda tarde, às cinco horas, se dava a descarga da caldeira do engenho, um locomove de fabricação inglesa do tipo usado pelas marias-fumaças dos trens da época. Desde a madrugada que ela fervia à base de lenha, produzindo vapor para girar as moendas e quebrar a cana. 

Nesse horário, de tarde, esfriavam a máquina e aguardavam o reinício no dia seguinte. O maquinista acionava apito agudo, aviso aos cortadores, lá no eito, da hora de suspender corte e regressar do serviço. O paiol da fornalha se ficava cheio de garapa suficiente de cozinhar até oito, nove horas da noite, limite de parar o caixeamento da rapadura, nas gamelas.

No processo de esvaziamento da caldeira, se enroscava um cano de ferro nas ferragens da locomotiva dourado com preto, e se abria torneira deixando esguichar água fervente que atravessa o beco entre o engenho e a casa grande, indo esse jato quente, em riste, a uns vinte metros.

Era hora de festa da meninada, que se punha a correr e pular sobre o esguicho a alguns palmos de altura, isso lá do meio para o fim da água, quando, então, já esfriara no contato com o ar.

Por volta de quatro anos, me reservava apenas a observar o momento dos outros, tímido e desconfiado, que fui assim nessa idade e em tempos posteriores, talvez até hoje.

Num desses fins de tarde, entre as pessoas que presenciavam a movimentação estava o meu avô Amâncio, pai do meu pai, proprietário das terras e do engenho, senhor austero, sisudo, com quem mantinha relações pouco estreitas, pelo jeito dele, sempre absoluto, a emitir ordens e determinar situações. Nas minhas lembranças, raro vê-lo na casa de meu pai, no sítio.

Sem avisar, ele me pegou pelo braço e postou uma de minhas mãos bem à frente do jato d´água aquecida, interrompendo o curso bem no princípio, me tirando a menor chance de fugir. Sustentaria durante alguns segundos o gesto, suficiente a que eu sentisse toda a intensidade escaldante, isto sem maiores explicações.

Após liberar meu pulso, ele se poria a rir em deliciosa gargalhada, coisa rara de eu ver acontecer.

Mediante a queimadura, mão em brasa, com a palma vermelha, queimada de água quente, em prantos, corri agoniado à procura de casa, não tão longe dali, onde encontraria minha mãe e outras pessoas, que trataram de usar nata de leite e amenizar os resultados da presepada de adulto.   

Não sei explicar o motivo da ação. Quero crer existir nela algum intuito, qualquer ensinamento do avô ao neto. Chamar a atenção, despertar os gestos e as circunstâncias imprevistas que a vida impõe, nem sempre agradáveis. Ao mesmo provocar mais resistência ao convívio das dores comuns neste chão. Ou mostrar o tipo de pessoa que ele era, de pedagogia rude. Desconheço a razão daquilo que experimentei cedo e que, por certo, justiça houve de acontecer, porquanto nada se dá ao sabor do mero acaso.

Mais na frente, eu e meu avô seríamos bons amigos, quando ele morava em Crato, na casa ao lado da de meu pai. Entabulávamos demoradas conversas e me contava episódios marcantes de sua história, os quais, vez por outra, escrevo, querendo preservar a memória da família e dos tempos vividos. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário