sexta-feira, 3 de novembro de 2023

As sombras da noite


Ao longe, o latido insistente de um cão qual quem grita aos astros mensagem desconhecida, e me conformo em apenas ouvir e presenciar o escuro da noite no fulgor dos céus e suas estrelas distantes. Hora adequada a relembrar o que passou; passou e permanece preso nos grilhões das horas que não mais existem. E uma mera escuridão toma conta de tudo em volta. Os tempos largados pelas calçadas numa paragem qualquer, onde circulam os derradeiros noctívagos e os sons lamurientos do que foi nos restos inúteis dos dias e na espera de outros momentos. Querer reencontrar as ocasiões e nem de longe qualquer nova oportunidade de aquilo regressar, das marcas dos prazeres mortos que, no entanto, fixam residência nos mourões da solidão das criaturas humanas.

Isto, as nuvens cinzas que persistem dizer dessas vezes em que, de tanto amar, a gente esquece de que tudo também passaria, mesmo que fruto de langores e carícias jamais imaginadas. Tudo, tudo, enfim, desfeito pela cinza do Tempo que devora o que há tão pouco realizou com tanto gosto. E por dentro, as pessoas e suas garras de ilusão, formas neutras de sentir o espaço que escorreu pelas veias e, nesta hora, fustiga de dor o coração. Lerdos instantes que só depois viram saudade atroz a confluir nos rios de amanhã.

Enquanto agora persistem os sons estridentes dos bichos noturnos a vadiar pelos pastos em volta, na alma desses seres adormecidos, quais bichos entregues à própria sorte. Fazem de si meros instrumentos de lassidão e dúvida, objetos em movimento nas esquinas deste mundo. Vento frio repisa as árvores silenciosas e segue rumo ao pouso derradeiro dos fulgores que descem das alturas e acalmam docemente os corpos abandonados às poucas luzes dos sombrios recantos, nas cidades esquecidas.

Só então dar-se conta de que outro dia virá ao sumir das réstias amarelecidas, e que sempre haverá o senso de nunca reconhecer, no dia, os gemidos deixados nas mesmas noites aonde seguem os dramas de vidas inteiras na busca à claridade do Sol.

(Ilustração: Noite estrelada sobre o Ródano, de Vincent van Gogh).

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