domingo, 10 de abril de 2022

O filme das ruas


Principalmente aos finais de semana, quando cessa o movimento intenso do comércio, as ruas falam alto de dentro da gente. Isso depois de haver morado tanto numa mesma cidade, que, silenciosa, revive seus acontecimentos que vivemos no decorrer do tempo. Fácil, fácil, e vêm desmoronando pelas encostas as décadas das velhas histórias ali depositadas bem no coração de gente. Digo coração porque, para mim, é ele a sede da memória propriamente dita, onde pensamentos viram emoções transformadas em sentimentos que grudam nas paredes da existência e tatuam de fogo as almas. Lugar espaçoso, por demais, de muitos megabits, que guarda os mínimos detalhes, as histórias vividas nas gerações. Isto mais diante da força dessas ocorrências que mergulham a fundo o recôndito de nós mesmos. São tardes cinza, calmas, frias, quase sem trânsito, sem pessoas andando, e logo chegam instantâneos bem focados desses momentos à alma, emoções fortes, por vezes doloridas, marcadas de saudade, ânsias de vômito e desejos entorpecidos. Aqueles mesmos personagens, que voltam, trazem neles cenas inteiras dessas horas aos intestinos da presença que ora somos. Fugir, nem pensar, nem tem lugar que seja de chegar, apenas a efervescência daquilo que o passado fixou e que insiste permanecer nas abas do firmamento, a dizer que estamos vivos nos muros, nos oitões, nas pedras, no teto das casas enegrecidas, nos armazéns envelhecidos ou reformados, esquinas, luzes que permanecem acesas, conspiração entre o que vivemos e os cenários daquele teatro de largas avenidas das vivências humanas, nessas estâncias de mornas recordações, reinos e penumbra

Nesse domingo de abril, fim de tarde, isso tudo repisou de lembranças meu íntimo sem a menor cerimônia, qual dominasse o ensejo de querer, no entanto causa perdida e regressos insistentes, criaturas, contos vagos, movimento lerdo, nítido, folhas secas incandescentes, e uma cidade mora no meu peito,  bicho largado vadio pelas matas virgens da consciência; não importa o quanto alimento de visões ou imaginação, o céu aberto de tal força logo em frente prevalece  Isso que lembra, de verdade, um provérbio africano que li, certa vez: Quando morre uma pessoa, se fecha uma biblioteca. Registros de eternidades indóceis, assim, nos amarram ao que vivemos, a ponto de recusar quaisquer argumentos de outras ausências, ou liberdade, aonde quisermos ir, pois o nunca habitará sempre essa casa das inexistências ora perene, lugar de inteira continuidade, em que imperam os atores e diretores dos nossos próprios filmes e sonhos...


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