quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

Temeridade

Em 1977, quando retornara de Salvador após anos  ausente do Ceará, fui resolver alguns assuntos em Fortaleza e caminhava pelas ruas centrais da capital, numa época ainda de muita hegemonia do comércio naquela área, diferente de hoje, quando existem polos de atendimento nos principais bairros periféricos e nos shoppings.

Próximo do legendário Hotel Savannah, no auge do expediente da manhã, observei reunião incomum de populares que presenciavam o desabafo exaltado de um homem magro, meio franzino, pálido, trinta e poucos anos, sandálias japoneses, trajes modestos, palavras agressivas, renitentes, tendo lá (quem sabe?) suas razões de andar contrariado e espalhando no pé da calçada os defeitos comunitários de alguns dos curiosos, quis deduzi, no pouco que fui ouvindo:

- Terra de muro baixo, terra de corno - em tom de discurso e aos gritos, repetia agressões continuadas, sem deixar claro o endereço das suas palavras, - aqui não tem homem, magote de vagabundos. - Generalizava impiedosa cobrança em face de não dispor de outros meios. Desespero total e absoluto, pensei, para chegar ao ponto de desafiar tanta gente numa só ocasião.  

Aos poucos se percebia completo destempero naquelas providências. Daí, mais gente que chegava. Anotava sinais de revolta na face das pessoas, porém até ali nenhuma resposta concreta.

Logo, logo, de dentro da pequena multidão, senhor alto, bem nutrido, estatura acima da dos outros nordestinos, usando óculos claros, em camisa mangas, de semblante sério, veio marchando incisivo e afastando os circunstantes, passos firmes na direção do foco das atenções, aquele tal, o indivíduo falastrão a quem me reportei. Chegado onde pretendia, fora de qualquer preparativo, aplicou-lhe vigoroso tabefe na região situada entre a nuca e a tábua do queixo, serenando os ânimos exaltados e forçando-o a tomar de vez um táxi Volkswagen parado no mesmo ângulo em que se projetara, que cabe cogitar estivesse prevenido para possíveis eventualidades, entrando pela janela da porta dianteira, tão forte o vexame do soco recebido.

- Arranca, arranca! - com essas palavras definiu a pronta ação do automóvel que sumiu no sentido da Praça do Ferreira.

De honra lavada, o povo sorriu e se dispersou. Nas imediações, apenas ficaram as sandálias do desafiante, que, abandonadas ao chão, testificavam o aperreio daquela fuga desastrada.  

2 comentários:

  1. Quando um "dono da verdade" encontra quem lhe enfrente, a covardia ou o medo surgem como escudos protetores.
    Que tabefe bem dado!!! Mereceu!

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  2. Emerson, grata por mais este texto para nosso deleite!!!

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