quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Falo nisso algumas vezes


... Nessas andanças nas ruas, que mais são senão viagens por dentro da gente. Ali nas casas, nas calçadas, nos jardins, e aquelas pessoas que preencheram o passado desse rio claro das horas intermitentes. Quase que com elas voltamos a conversar, a sorrir, retalhos do tempo que vagam feitos folhas secas, nuvens que deslizam lá longe nesse espaço imortal que bem significa as memórias engasgadas dos nossos sentimentos, saudades frívolas de outros espetáculos deixados lá fora quando sumíamos pelas entranhas dessas visões insólitas que custamos compreender que se foram de vez. Bem assim vivem as pessoas. Reúnem momentos e os guardam não sabem onde, porém que elas insistem regressar intensos de dentro dos alforjes que lhes transportam a outras dimensões e cidades.

Sinto isso ao caminhar pelas ruas às caladas dos dias, longe daqueles que sumiram no abismo da presença e seguem soltos na imaginação incansável das outras criaturas humanas. De certeza ficaram impregnados nas mechas da eterna continuação de tudo o que persiste no íntimo das gentes, mesmo que correr não tem aonde. Muitos, multidões, desses personagens sempre ali nas esquinas, de olhos postos no futuro daquilo que transportavam no coração. Apenas significaram esse passado do que jamais existiria. Mergulharam às avessas nas somas do que deixaram nesse para sempre que agora posso colher descompassadamente, nas pisadas do sentimento vivo que sou.

Foram, pois, horas, dias, visões que esmagam de ausência o desejo forte de que nunca houvessem desaparecido. Luas, sóis, estrelas, infinitos, numa velocidade estonteante do movimento que ferve nos olhares vazios, horizonte de visagens e lugares. Eles todos hão de voltar lá certa vez e fazer de tudo isto uma felicidade única, justificativa de andar nas veredas misteriosas da humana solidão. Razões do que existe tais vultos do teatro das histórias que sustentaram durante seus sonhos, do quanto vislumbraram tantas vezes de chegar um dia na alma de um mesmo corpo e ao corpo das mesmas almas, no jamais deixaremos de sonhar, â busca de igual consciência de ser.

(Ilustração: Crato antigo, Rua Miguel Limaverde).


Um comentário:

  1. Lendo o seu texto, mergulhei no passado com uma vontade enorme de lá, reencontrar figuras que fizeram parte e foram significativas na minha infância e adolescência, no Crato vividas.
    Momentos doces e momentos sofridos cá chegaram e me fizeram acreditar que o melhor é seguir em frente, sem olhar pra traz, vendo, na estrada só o amanhecer, pontilhado de esperanças, não apenas verde mas com um colorido de um belo alvorecer.
    Você, amigo, com seu texto, conseguiu que eu vencesse a barreira do tempo e, lá chegando, me reencontrasse com a Ana de meio século atrás.
    Mais uma vez te agradeço essa magia!!!

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