segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

Artes da ficção

Antes alguns dias ouvira aquela notícia de que nossa Terra sofreria uma mudança radical de polaridade cósmica, Norte seria Sul e Sul, Norte. Isto que tem data marcada; as proféticas notícias falavam de inversão extrema na mobilização do Planeta perante o espaço infinito, transformações dos movimentos de rotação e translação e outras consequências mais.

Mas o que contava mesmo, naquela tarde logo após a sesta, foi de ele sair ao quintal já munido da escova de dentes e começar a escovação, o que fazia sempre pela manhã no despertar corriqueiro e agora seria levado por estranhas forças a cumprir o ritual do asseio em pleno calor da tarde. O Sol era, no entanto, igual ao dos dias anteriores, apenas com um pequeno detalhe, pequeno e importante, vez que nascia no poente, da outra banda, no horizonte do lado contrário, desde aquela primeira vez. 

Nisso pensou que estivesse em outra dimensão, ou mais precisamente, noutro lugar do Chão que não fosse idêntico ao que deixara na hora em que adormecera cedo na tarde. Contudo, ainda desse jeito, raciocínio insuficiente a esclarecer a revirada total que pareceu lhe ocorrer no humor, de o mundo girar em sentido contrário, sem o que dissessem de certo pela televisão, pela internet... O que aquilo que houvera, então, sido até ali esdrúxulo ao máximo de inverter a tal polaridade?!

Bem, iremos devagar; veio sendo assim desde aquele instante em que notara, a ordem do Universo conspirava naquilo nas mínimas funções, pela reversão cronológica dos equipamentos eletrônicos, que aos poucos regressaram, dia após dia, aos velhos modelos lá de antigamente, outro sinal imbatível. Revia aos passos de ocasiões sucessivas os modelos dos rádios que conhecera no passado, rádios a pilha, a válvula, invenções da época das ditas modernas produções, imaginação fervilhante dos primeiros cientistas, os metais, as madeiras. O telefone, esses, dos esmartes aos da manivela, revelavam as marcas dos períodos; telegramas, correio a cavalo, a pé, a caravelas; tambores tribais, nuvens de fumaça nas montanhas afastadas; relâmpagos e trovões. 

Num processo repetido, visto momento a momento, vidas adentro observava o corpo, a própria pele, que limpava gradualmente cicatrizas das batalhas de que participara, das jornada terrenas, e ganhava elasticidade jovem a princípio, e infantil na sequência da comédia. Quando menos esperou, acompanhava às avessas o parto da sua mãe, e logo depois o seu desparecimento individual de esperma antecedendo a relação donde fora gerado. 

De regressão em regressão, entrou dessa maneira em um nível mórbido de flutuação nalgumas paragens que nem delas lembrava existir a memória, de outras esferas, outros universos, invisíveis que fossem; vagou num tempo sem velocidade, mas de paz e neutralidade crucial; luzes mergulhando na inexistência em ritmos ora alucinantes, acelerados, ora suaves, etéreos e vastos, conquanto nunca houvessem sido hora nenhuma que pudesse haver existido nalguma quimera.

Qual numa sucessão caleidoscópica de gerações, gerações, idades e acontecimentos, viu cruzar pela retina assustada, de tantas tradições revividas de modo inverso, inúmeras histórias de gente, civilizações do que antes registrara durante as muitas vidas, inclusive testemunhando a presença constante daquelas pessoas conhecidas com quem privara as estações geológicas que foram embora, e julgava que acharia de novo. Mundos e mundos, horas e horas, dias, meses, anos, séculos, milênios, bilênios... Perlustrou a era dos elementos originais; acompanhou de perto os esturros das manadas de búfalos nos sertões americanos; os dinossauros vagando famintos pela África; as cheias do Nilo; as aflições do Dilúvio; olhou de perto a crueldade insana dos reinos bárbaros e seus banhos de sangue ao preço da ganância nas fúrias de riqueza; ilusões; páginas sem conta de livros clássicos sendo jogadas às chamas das fogueiras e das guerras; fome campeando solta nos impérios devastados; vaidades vendidas, vencidas desde o nascedouro das paixões humanas.

Então, surpresa a sua, sentiu a paz deslizando pelos campos vivos dos lugares equilibrados, de animais pastando entre si sem a fome voraz das outras feras...

Um casal que assistia aquilo tudo sorria embevecido quais seres iluminados; seriam, avaliou consigo, os primeiros viventes daquela humanidade que sumia na voragem inversa dos movimentos.

Impacto inigualável, algo aconteceu de inopino; explosão monumental de mundos, espécies, formas, nisso ocasionou depois o silêncio solene no transcorrer daqueles sonhos intermitentes que viraram neblina em sua consciência. Unicamente ausência, de habitantes e objetos, tornou a visão íntima em um quase nada poderia persistir, sensação pouco a pouco revestindo apenas vazio imenso que pairou infinitesimal nas derradeiras pulsações que balouçaram nas ondas do mar de luz absoluta e um Sol a refletir claridades superiores ao que quer que esgotassem os rios das vivências arcaicas desaparecidas para sempre; e Ninguém a ver... A ver... Nada...

(Ilustração: Colagem, Emerson Monteiro).

2 comentários:

  1. Que incrível este texto. Hoje mais do que nunca você está inspirado! De repente eu também não me encontrei, ao me deparar com tantos desastres na natureza, em sua maioria provocada pelo homem. Vem a lama em Brumadinho, vem a enchente no Rio de Janeiro, vem um incêndio de tamanhas proporções a ceifar vidas de jovens em tenra idade, cheios de sonhos e de esperanças. E veja bem não é ficção, são acontecimentos, afora outros não aqui relacionados, em apenas nos primeiros meses deste ano. Precisamos orar para que a rotação da terra e dos acontecimentos mudem. É muito sofrimento para tão. Pouco tempo. Fugi um pouco ao comentar o seu texto, mas esta excelente, ficção e realidade numa mistura de regressão no tempo e no espaço, de sonho e realidade, muito interessante e criativo. Parabéns. Bonita a sua colagem. Um carinhoso abraço ao amigo Emerson Monteiro.

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  2. Mas de tudo eu gostei de uma coisa, a regressão, outras vidas quem sabe lá eu encontraria à lusa que procuro para iluminar minha vida, meus sonhos, sem ter que atropelar ninguém, sem contrariar ninguém, sem ter que buscar amizade nas paragens e estações fechadas, sem ter que implorar afetos ou depender das opiniões alheias, dos afetos que não me pertecem, das buscas incansaveisdos sonhos impossíveis, . A vida da ficção é bem mais fácil mais leve, mais feliz. A vida da ficção, como próprio nome define, é um ficção, portanto não existe. Um abraço Emerson Monteiro. Obrigada por nos proporcionar momentos de enlevos com os seus textos.

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