quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Perfume de gardênia


De uma coisa ele nunca esqueceria, o perfume que ela usara desde o primeiro encontro na pracinha ao lado da Matriz, centro glamouroso da cidade do interior e suas gentes enfatiotadas nos fins de tarde dos domingos, após a missa das seis.

Daí, se amaram a valer, união de marcar época em qualquer reencarnação. Ele, de mais idade; ela, jovem doce, de olhos misteriosos, olheiras acentuadas pelo tanto que gostava de dormir. Apegados feitos dois ilhoses aconchegados nos íntimos de cada pessoa, andaram fronteiros das maravilhas dos sonhos, amigos afeitos um ao outro, vocação de felicidade intensa, gostosa.

Aquele cheiro de gardênia do seu perfume enchia os pensamentos dele tão logo pensasse nos próximos encontros. Funcionava assim qual senha de certeza antecipada de se verem de novo em breve, assuntos de corações amantes, insólitos. Houvesse desejo de ser rever, lá crescia o perfume e nada demorava no tempo a se acharem nos traçados irregulares das ruas da cidadezinha cheia de locais típicos de amar a quem nutre a sede dos beijos e abraços, em tardes mornas, manhãs luminosas, noites agradáveis.

Bom, nesse pisar a vida correu, em meio aos intensos fervores do casal em chama. Outras preocupações sobravam fácil no terreiro da afeição recíproca. Força superior das vontades juntas, a somar olhares luminosos em tudo por tudo, aquele amálgama revelava sinfonia estável. Eles se casaram por declive natural de conseqüência, em meio a festa simples de fim-de-semana, indo morar num dos bairros da localidade, para receber os amigos nas datas maiores e viajar nos trilhos macios do firmamento em brasa dos crepúsculos e alvoreceres.

Lá um dia, desses que ninguém ignora, porém jamais aspira reviver, mal repentino achou de romper aqueles laços supremos do amor dos felizes, sopapo de entristecer o clima, escurecer de nuvens cinzas os céus vários dias seguidos, marcando a alma dos viventes assustados pelos laços da fatalidade. Ela morreu sem que eles recebessem aviso prévio, num lamento só no lugar.

O impacto disso qualquer ser supõe e se arripuna... Rejeita... Foge...

Ele, largado no vento dos escuros e claros, abandonado aos dentes do inesperado, viu escorrer pelos dedos a fartura da alegria imensa que desfrutava, sujeito das ondas misteriosas da existência. Chorou de não contar mais água nos reservos da carne. Estudou livros sagrados, jeitos de rezar do melhor jeito, pedir, implorar, praticar cilício, renunciação, meditação. Chamou todos os santos. Negociou promessas. Desistiu de usar o pensamento, e silenciou por dentro, a olhar o vazio da não-mente dos budistas, ciente de chegar qualquer dia algum lugar interno de si.

Contudo certeza certa mesmo lhe veio quando, sem mais nem menos, noite dos mormaços de setembro, ele, acordado nas malhas da saudade rigorosa que administrava, sentiu inevitável o fragor odoroso de gardênia, misturado com o hálito bom dos lábios da amada logo ali do lado, no lar ardente dos passados sonhos de tantas e inolvidáveis noites.

Assim, daquela às noites seguintes, às horas de sempre, o perfume de gardênia encheu de presença boa a casa aonde construíram a base da felicidade, sinal da imortalidade da companheira guardado na essência do ser, dando a condição de vidas persistente, vitória sobre às sombras do desaparecimento. Nisso, eles dois se abraçaram noutro nível de existência, na composição suave de laços imaginários, o sobreviver no horizonte eterno. Chegavam pelo perfume à verdade do matrimônio espiritual das almas.

 

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