quinta-feira, 31 de outubro de 2024

A Rua Padre Ibiapina

Chegamos em Crato, eu e minha família, no segundo semestre de 1953. Morávamos antes na zona rural, em Lavras da Mangabeira. De início, permaneceríamos algum tempo, meses apenas, numa casa da Rua José de Alencar, entre José Carvalho e Pedro II, quase no centro da cidade. Daí, no mudaríamos para um bangalô, residência de dois andares, construída por Pergentino Silva, na Rua Padre Ibiapina, Bairro Pinto Madeira, onde, na década de 70, instalariam por algum tempo a Prefeitura Municipal e outras instituições, para hoje abrigar a Escola Tia Joana.

Ali nos demoraríamos dez anos, enquanto meu pai construía, no lado de cima do mesmo quarteirão, a casa que até hoje ocupa, voltada para a Rua São Francisco, esquina com Vicente Tavares Bezerra.

Essa fase da vida em que passamos naquela casa de dois andares marcou época cheia de acontecimentos de minha infância os quais guardo na lembrança com carinho especial. A residência ocupava área central de um pátio elevado acima do nível da rua em que cresceram nove mangueiras e outras árvores, cercadas de muro em ruínas. Nesse território de barro vermelho transcorreu minha segunda infância, entre meus irmãos e os meninos da rua, meus convidados às brincadeiras mais diversas, desde jogo de bola, bila, triângulo, pião, carrinhos, esconde-esconde, come-on-boy, contação de histórias, alternados pelas safras disputadas de manga, pinha, seriguela.

Anos a fio, não conto as chances de largar mais cedo os livros para pisar no chão de terra batida, solitário ou acompanhado; subia nas árvores e permanecia horas e horas a olhar o fluir do tempo, na distância que aquelas alturas permitiam.

Quando chegamos e durante alguns anos, não existia calçamento na rua, a facilitar as brincadeiras dos tantos que ali se encontravam, de quem lembro alguns nomes: Aroldo, Chico Zé, Aglézio, Assis Brito, Beto, Chico Antônio, Zé Roberto, Jaime, Lindolfo, Junival, Flávio, Renato, Jorge Ney (meu primo), Everardo (meu irmão), Ivan, Ivanildo, os filhos de Bianor, Otacílio, Vavá, Zé Nilton, sob faixas etárias díspares, mas pessoas aproximadas quais de uma só família.

Dada a distância do centro comercial urbano, formávamos comunidade de características próprias. Nas noitadas de fim de semana, fôssemos à Praça Siqueira Campos, lá nos encontraríamos em banco particular com toda a turma, para retornarmos em blocos quando voltássemos à casa.

Por longo período, a energia elétrica quase não chegava no lugar. As tochas de luz avermelhada, acesas na cabeça dos postes de madeira, geração da turbina da Nascente, indicavam tão só o rumo da rua, sem iluminar duas braças além do seu contorno. Nas noites escuras, sentávamos, então, no fio de pedra da calçada do Abrigo dos Velhos, em frente de minha casa, a contemplar as estrelas e estender longos papos a respeito de tudo. Houvesse luar, e o mistério daquelas horas ganhava conotações românticas, sonhos de menino em tiradas democráticas, diante da participação indiscriminada dos presentes.

Ali circulava o desenrolar da atualidade, trazido nas ondas do rádio de válvula e nos raros jornais e revistas que penetravam o interior isolado. Religião, futebol, humor, criminalidade, amores, viagens, estudos, guerra, folguedos, história, música, fantasia, visagens, sonhos, passeio nos universos individuais dos participantes das reuniões mantinha o clima mágico, repetidas vezes. Ninguém se fartava de ouvir e narrar seus conteúdos, na espontaneidade que sei agora funcionou de primeira escola aos que nela depois reconheceriam sua importância para a formação de cada um de nós.

sábado, 26 de outubro de 2024

As cigarras de outubro


São vozes que falam ao coração da gente. Qual silêncio em uma cadência que circula pelos ares, a doce melodia das horas indica, logo depois, os finais de tarde. Numa serra qual quem adormeceu na saudade, reboam pelos céus sentimentos em forma de longos estribilhos, a percorrer as árvores e os animais. Disso, nascem intermitentes as histórias que contam as vidas em movimento. De tudo um pouco, desde longas histórias guardadas a sete capas até as lonjuras da imortalidade que observa os incautos a lhes prometer salvação.

Elas, as virtuoses do destino em perfeitos acordes pelos mares da consciência, suavemente relembram sonhos que revelam a perfeição da religiosidade, arautos da presença eterna de tudo em fragmentos intermináveis de beleza que inscrevem no firmamento os seus derradeiros raios do dia.

Há, no entanto, o senso de permanecer diante das circunstâncias que ainda assim desaparecem pelo horizonte.

...

O desejo alegre de continuar o dia nisto se constrói nas nuvens monumentais lá adiante; outras notas da mesma melodia que se desfazem no tempo. Conquanto todas interrogações de momentos fugazes, as cores desfazem a tela do Infinito e abrem-se à escuridão da noite, que, sorrateira, aproxima seus longos braços tangidos pela brisa daqueles instantes derradeiros. Ali, escondidos sob as sombras, há esparsos amores nas notas da Ave Maria que preenchem de felicidade o âmago das criaturas.  

Quanta lindeza aos olhos e ouvidos das luzes que viajam pelo distante abalo dos mistérios. Resta definitivo o penhor de solidão que nos envolve e avisa das novas existências que já vicejam nas asas do vento.

terça-feira, 22 de outubro de 2024

Somos a brisa que passa


Sem deixar vestígios, transcorremos o tempo à procura de sombras. Olhos abertos ao infinito das horas, apenas cumprimos a missão de existir sob a luz do firmamento. Longos cortejos, pois, deslizam pelos roçados da sorte e contemplam assustados mil folhas em volta. Ardentes de desejos, nisto, efetuam o cálculo dos dias e sonham absortos. Bem isso, paisagens ocultas sob o teto das agruras, e procuram divisar o sentido oculto na visão, nós por nós, longos estirões de animais em fuga pelos ares. Quiséssemos e ter-nos-íamos parceiros das distâncias apenas nalgumas pequenas doses de ração que alimentam o sabor de ser a qualquer desses instantes. Mais que isso, forjamos armaduras e destruímos apegos face a face com o esforço de continuar, porém continuar.

Depois de tudo isto, contemplar as distâncias e vadiar nas noites feitos vultos lançados ao vazio, meros autores de sonhadas circunstâncias. A meio de palavras e frases, apenas suspiros silenciosos doutras dimensões até então escondidas, soturnas, feitas de pequenos fragmentos de almas ansiosas.

Fôssemos, portanto, revelar o sentido que nos arrasta pelas encostas do destino e tão só viveríamos dos frutos verdes da imaginação e dos pensamentos. Quantos amores, tantos gestos de impensada justiça... descobriríamos nesse ritmo alucinante, intermitente, seres luzes em formação, reis em crescimento. Destarte, no eito de sustos e dores, um parto acontece de dentro das figuras em movimento nessa crosta do vento. Senhores de toda possibilidade, assim crescem dos sentimentos desfeitos em saudade nas telas imensas do horizonte. Enquanto isto, aqui conosco mora o abismo aonde iremos desvendar o quê e perenes contemplamos, sórdidos, do que ora somos, apreciadores da distância e dos renascimentos, transportes de consciências adormecidas.

(Ilustração: Leonardo da Vinci).

domingo, 20 de outubro de 2024

Um tempo na Bahia


Na noite de 28 a 29 de janeiro de 2006, revi num sonho alguns lugares da Bahia, em Salvador, onde vivi de agosto de 1971 a março de 1977 e retornei, por sete meses, em 1978, e três vezes mais, durante períodos de curta permanência, em 1983, 1985 e 1986.

Queira recordar de pessoas e lugares de Salvador, dessas ocasiões, e nenhuma dificuldade terei, porquanto moram em mim torrentes de imagens e momentos ali experienciados, quais jóias raras incrustadas na memória. Integraram-se dentro da minha história quais elementos essenciais, a ponto de revê-los ao menor gesto, a deslizar feitos fotogramas de película indelével, de largo teor afetivo agradável e valioso desta existência.

A cidade e sua geografia, entrelaçadas na bela e privilegiada locação da paisagem natural, fácil, fácil, dominam a visão dos que observam, o que, de tempo em tempo, volta nos meus sonhos com nitidez de causar admiração.

Desta vez, andava pelas ruas do Comércio e da Cidade Alta, em meio a seus prédios elaborados no estilo colonial português das Grandes Navegações e colonial inglês do século XIX, assim como quem passeia por sítios antes seus conhecidos. Entrava e saia nesses edifícios, encontrando personagens do cotidiano, observando o movimento e lembrando que me achava apenas em visita, realidade atual mesclada nos tons do pretérito, mecanismo típico da atividade onírica.

O mar é presença constante em toda Salvador. A refulgência das águas dispostas na Baia de Todos os Santos até a Ilha de Itaparica, fosso extenso e pano inevitável da cena, em certos momentos dos dias de sol intenso e das noites de lua cheia, impressiona deveras a todos, através da mágica da luz que reverbera na própria alma e causa alegria só conhecida em pousos elevados que dominam o mar, tipo a capital baiana e suas colinas em forma de espinhaço, por onde se distribui de modo harmônico e colorido.

Com o sonho, fui lembrando de coisas precedentes, depositadas no mistério da consciência. A agência do Banco do Brasil em que trabalhei, na avenida Estados Unidos e os colegas de várias origens, mais dos Estados do Nordeste. O Convento do Carmo. O Elevador Lacerda. O Plano Inclinado Gonçalves. O Gabinete Português de Leitura. Pontos esses do meu percurso diário. Os prédios soturnos das escolas que freqüentei. Os monumentos principais espalhados na geografia soteropolitana e sua imponência da austera origem européia colonizadora. As igrejas envoltas no lodo escuro de décadas e as cerimônias típicas do culto católico, recorrente tantas horas do dia, no meio dos claustros e do turismo avassalador.

Quão preciosas lembranças sobrenadam o ser interior ao se transcorrer cenas gratificantes de uma vida as quais se viveu com sentimento e distante solidão. Resolvera morar na Bahia sem conhecê-la, apenas pela influência da literatura, da música e do folclore daquela civilização, berço do Brasil, nascida na miscigenação das influências sobretudo de africanos, portugueses e espanhóis.

Diante da emoção do sonho, querendo preservar a voltagem dos bons sentimentos da hora, em gesto preliminar, pois, vim ao papel e registrei, nos poucos detalhes assinalados, estas considerações de um tempo rico de vivências. Enquanto isso, tributo de jeito rápido meu reconhecimento ao o povo baiano face ao modo hospitaleiro com que me recebeu nesse tempo, citando que daquela raça procederam os primeiros civilizadores do Cariri, vindos da Casa da Torre de Garcia D’Ávila, no Ciclo do Couro, fins do século XVII, princípios do século XVIII.

sábado, 19 de outubro de 2024

Uma nova chance

Bem que aquela manhã de domingo poderia ser igual a outras manhãs de domingo em Lábrea, no Amazonas, não houvesse a procissão sinistra, que apontava dolente na esquina, acelerando os corações dos moradores da rua calma, que saíam à porta, sacudidos de chofre no meio da rotina ensolarada, em espasmo sensacionalista para as brenhas remotas das cidades pequenas.

À frente, retido com vigor nas manoplas de dois guardas fardados de caqui, um meliante e protagonista de contravenções, bares, drogas e luares escondidos nas matas do lugar, recebia no corpo, em ritmo tenaz, pêndulo infamante de cassetete escuro de um terceiro guarda, a contundir-lhe as costas sangradas e suarentas de prisioneiro perdido nos caminhos da delegacia.

Os gritos carregados rompiam entre as casas feitos lâminas de facão enferrujado rasgando os cipós da sensibilidade rude das pessoas, mistura de gente e animais daquelas selvas adormecidas, no clima sedento do Norte úmido.

Quando o tropel violento chegava mais perto de sua casa, Ednelza viu romperem-se as comportas do coração de jovem de 15 anos e, decidida, interpôs-se no caminho da turba fantasmagórica. Em confronto àquelas pessoas hipnotizadas a tanger indiferentes a cena, pôs-se de joelhos num susto, ergueu os braços em desespero e gritou aos céus, na propulsão de reclamar em nome dos milhares de pulmões injustiçados:

- Por amor de Deus, eu peço, por amor de Deus, parem com isso! – clamou com vontade, cheia da indignação de que carecem tanto abandonados de justiça neste mundo.

Surpresos, quais contidos por mãos procedentes de outra dimensão, os policiais contiveram o passo e levantaram olhos frios à moça alva, franzina, de cabelos longos, que lhes impunha respeito na força da atitude que detivera os seus instintos brutais. Refeitos do impacto inesperado, deixaram de moer o lombo do infeliz, andando a levá-lo quase desfalecido à cadeia pública.

Os populares, acompanhantes frustrados da estranha cerimônia às custas da dor alheia, se dispersaram nos becos, aos poucos restabelecendo a paz. Tão só Ednelza ainda manteve o tremor e as lágrimas, lembrança da judiação, mercê de quem aplaude os perversos em nome da Lei, nesses rincões afastados.

...

Tempo transcorrido, torno de mais de década após aquilo, perante apressados transeuntes no centro de Manaus, o ex-detento de Lábrea encontrou um dos irmãos de Ednelza, reconhecido seu, e testemunhou o quanto lhe fora importante para o resto da vida o grito de compaixão que sustara os guardas, naquela manhã de domingo, no interior do Amazonas.

Em conseqüência disso, cientificara-se do valor que possui cada um ser, defendido a troco de tudo, ao preço da comoção de pessoa dele desconhecida, distante, porquanto a coragem de Ednelza lhe salvara a vida. Na cadeia, pesara os desmandos praticados na existência que levava e estudou as chances de mudança através de modos e compromissos, sempre acreditando na firmeza autêntica de quem punira em seu favor.

Depois, reconstruíra sua história noutros termos, cônscio das reais possibilidades de que dispõem as criaturas e tratou de mudar para melhor, apressando-se a contar o efeito do gesto da jovem, que hoje é mãe de família e reside em Juazeiro do Norte, no Ceará.

sexta-feira, 18 de outubro de 2024

O carrossel das existências

 

Mais que puro enigma, o Tempo faz e desfaz a todo instante. Fogueira acesa nas abas do Destino, esse ritmo feérico sacode a essência de tudo e deixa de lado as marcas de novas interpretações. As convenções valem pouco, nesse afã de passar inevitável. Apenas isso, seres anônimos que observam e se desfazem ao cair das tardes. Exímios fazedores de histórias, também as esquecem aos finais das quermesses irreverentes do dia. Nós; que fossem outros, no entanto, minúsculos seres dessa lenda, adormecem, lá longe, sobre os próprios exílios que fizerem. Criam e a elas alimentam, nas ilusões enternecidas. De quanto seja, resta o silêncio e as flores das estações, que também fogem de si no esquecimento voraz. Horas a fio, o comboio dos presentes em desaparecimento ora some no quebrar das resistências. A cada todo instante, novas circunferências que foram e voltam em seguida...

Sim, disso nascem as músicas, os sons da Natureza, as cores e o vento dadivoso. Lá em cima, os astros cruzam enquanto existir o eixo perpendicular que os sustenta nos seres; porém persistirá no sentido adormecido das consciências aladas. Vezes seculares e os céus em movimento contorce o vazio das noites. Detalhes do Infinito acendam novos dramas pelas telas do sentimento. Pessoas que vêm, que vão, indistintamente, no pulsar dos corações. Luzes constantes, somos esses autores e protagonistas da velocidade e dos amores fugazes. Meros significados adormecidos, abrimos o caminho da dúvida e mergulhamos no depois, feitos mercadores da consciência.

Querer ou duvidar, resta viver e sonhar, unicamente. Quase nadas nas engrenagens do impossível, existisse a água e vagaríamos ausentes no Cosmos. Tantos, e tão luminosos seres, guardam consigo a chama do mistério; sofrem ou gozam dos segredos na Eternidade logo ali agora, pois. Disso, retalhos de tecidos imaginários preenchem o cenário do desejo e escutamos calados as poucas palavras a ouvir na solidão.

(Ilustração: Vladimir Kush).

 

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Perfume de gardênia


De uma coisa ele nunca esqueceria, o perfume que ela usara desde o primeiro encontro na pracinha ao lado da Matriz, centro glamouroso da cidade do interior e suas gentes enfatiotadas nos fins de tarde dos domingos, após a missa das seis.

Daí, se amaram a valer, união de marcar época em qualquer reencarnação. Ele, de mais idade; ela, jovem doce, de olhos misteriosos, olheiras acentuadas pelo tanto que gostava de dormir. Apegados feitos dois ilhoses aconchegados nos íntimos de cada pessoa, andaram fronteiros das maravilhas dos sonhos, amigos afeitos um ao outro, vocação de felicidade intensa, gostosa.

Aquele cheiro de gardênia do seu perfume enchia os pensamentos dele tão logo pensasse nos próximos encontros. Funcionava assim qual senha de certeza antecipada de se verem de novo em breve, assuntos de corações amantes, insólitos. Houvesse desejo de ser rever, lá crescia o perfume e nada demorava no tempo a se acharem nos traçados irregulares das ruas da cidadezinha cheia de locais típicos de amar a quem nutre a sede dos beijos e abraços, em tardes mornas, manhãs luminosas, noites agradáveis.

Bom, nesse pisar a vida correu, em meio aos intensos fervores do casal em chama. Outras preocupações sobravam fácil no terreiro da afeição recíproca. Força superior das vontades juntas, a somar olhares luminosos em tudo por tudo, aquele amálgama revelava sinfonia estável. Eles se casaram por declive natural de conseqüência, em meio a festa simples de fim-de-semana, indo morar num dos bairros da localidade, para receber os amigos nas datas maiores e viajar nos trilhos macios do firmamento em brasa dos crepúsculos e alvoreceres.

Lá um dia, desses que ninguém ignora, porém jamais aspira reviver, mal repentino achou de romper aqueles laços supremos do amor dos felizes, sopapo de entristecer o clima, escurecer de nuvens cinzas os céus vários dias seguidos, marcando a alma dos viventes assustados pelos laços da fatalidade. Ela morreu sem que eles recebessem aviso prévio, num lamento só no lugar.

O impacto disso qualquer ser supõe e se arripuna... Rejeita... Foge...

Ele, largado no vento dos escuros e claros, abandonado aos dentes do inesperado, viu escorrer pelos dedos a fartura da alegria imensa que desfrutava, sujeito das ondas misteriosas da existência. Chorou de não contar mais água nos reservos da carne. Estudou livros sagrados, jeitos de rezar do melhor jeito, pedir, implorar, praticar cilício, renunciação, meditação. Chamou todos os santos. Negociou promessas. Desistiu de usar o pensamento, e silenciou por dentro, a olhar o vazio da não-mente dos budistas, ciente de chegar qualquer dia algum lugar interno de si.

Contudo certeza certa mesmo lhe veio quando, sem mais nem menos, noite dos mormaços de setembro, ele, acordado nas malhas da saudade rigorosa que administrava, sentiu inevitável o fragor odoroso de gardênia, misturado com o hálito bom dos lábios da amada logo ali do lado, no lar ardente dos passados sonhos de tantas e inolvidáveis noites.

Assim, daquela às noites seguintes, às horas de sempre, o perfume de gardênia encheu de presença boa a casa aonde construíram a base da felicidade, sinal da imortalidade da companheira guardado na essência do ser, dando a condição de vidas persistente, vitória sobre às sombras do desaparecimento. Nisso, eles dois se abraçaram noutro nível de existência, na composição suave de laços imaginários, o sobreviver no horizonte eterno. Chegavam pelo perfume à verdade do matrimônio espiritual das almas.

 

terça-feira, 15 de outubro de 2024

Espírito de rebanho



Há animais solitários. Outros carecem de ter a quem seguir, ou ser seguido, quando muito. Essa fome deslavada de cumprir pungente determinação, que vem de dentro, houveram de chamar de instinto, impulso inato avassalador que determina. No entanto, nos humanos persistem os dois fatores; nalguns, puro e simples, o instinto de continuar em grupo a todo custo. Noutros, a ânsia premente de sair sozinho pelas horas vazias à busca de si mesmos ou das razões ausentes, ainda sem a devida compreensão de quase nada. Seres humanos. Animais solitários, ou componentes das manadas deixadas no furor das circunstâncias, iguais ao inexistente, dalgum modo. Disto nascem os preâmbulos das tantas histórias que deixam no lastro de pegadas fantasiosas nessas terras do sem fim.

Senhores, pois, do firmamento, vultos sombrios dos jogos da memória individual, transcrevem os contos e as lendas feitos senhores do desaparecido, filhos diletos de um paraíso perdido nos sóis. Dia desses, quando menos esperar, revelam criaturas até então ausentes do quanto ficara registrado no teto da imensidão. São pulsações jamais consideradas em outras gerações, contudo escrita necessária aos eventos guardados no íntimo de largas experiências, quem sabe na alma de toda criatura?! Restos de aventuras prodigiosas vividas por nós ou, quiçá, inolvidáveis sobras do prato dos destinos?!

Nisto, o desejo de contar que todos têm, gregos e troianos, do traçado imaginário e das necessidades humanas que enchem de fervor o pulsar dos corações. Bem que seja assim desde o começo. Nem da vontade o instinto de narrar essa epopeia divina contém o que nela habitam esses tais passageiros das visões e escritos. Em qualquer das estações, a torto e a direito, lá conduzem seus impulsos, no puro contexto de consolidar essa função original de estar aqui mesmo longe das realidades e ficções perdidas nesse mundo daí afora.

Li, outro dia, José Saramago a dizer: O heroico no ser humano é não pertencer a um rebanho. Nisso, fiquei a matutar naqueles que se perderam na solidão do Infinito à cata dos heróis da própria história. E sonhei com as noites iluminadas de estrelas pelos céus inexplicáveis

domingo, 13 de outubro de 2024

Enquanto isso II


... Saber-se entre sonhos, pensamentos e palavras, tudo toscamente resumido diante do inesperado que nunca cessa de continuar existindo. Espécimes de um Universo ilimitado, fagulhas do mesmo céu, no entanto, e aqui haver de seguir para sempre. Folhas de antigas estações desaparecidas ao vento da sorte, regas de velhos rios em movimento às bordas do oceano inimaginável do Eterno, todos adiante, presas do instinto de tocar os desejos inconfessáveis, instrumentos de si só a meio de tantos desafios dessa gincana adrede preparada a que víssemos os laivos de fantasias criadas a cada instante.

Lá fora, o caudal de contos deixados nas horas; livros, filmes, notícias, versões, viagens, astúcias, pergaminhos, mausoléus abandonados, lendas vivas, ficções exacerbadas, horários a cumprir. Onde antes nada havia, depois também nada haverá. Painéis de cores estonteantes preenchem os dias de tantas luzes que nem de longe poder-se-á deduzir a fome do que padecem os refugiados das guerras, os enfermos nas emergências, os animais nas florestas incandescentes, as noites insones dos esquecidos.

Porém existem funções individuais inevitáveis, a contorcer as entranhas dos que reclamam e nada fazem. Minúsculos grãos desse celeiro imenso das multidões, levas e levas arrenegam os sóis e adormecem aos braços da ilusão enfurecida. Se há que pedir perdão é a si próprio, autor inextinguível da humana criação pessoal. Início e fim da consciência, contudo esbarra no pavilhão dos deserdados, isto por conta do quanto deixou de lado no fazer dos sentimentos.

Ao sabor das palavras, frases ganham espaço no ritmo desse afã de transcorrer dos vários tempos que se desmancham aos nossos olhos feitos algo jamais acontecido. Daí a importância dos aspectos que fogem apressados pelos instantes e contêm os indícios claros dalguma realidade além do quanto ficou de antes e agora e restou de esperanças em vias da real felicidade.

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

O que conta de tanta luz em volta


Enquanto isso, nós aqui, meros aprendizes, prisioneiros entre o passado e o futuro, aventureiros da sorte. Sorrateiros, perfilamos fibras a sacar ao sol dos dias, senhores dalguma ilusão ou cativos de longas noites de sombra. Sicários, duendes, estranhos de florestas adormecidas, singramos mares imensos às frentes de manhãs desconhecidas, parceiros doutras histórias, tótens das tantas religiões.

O alimento desses sonhos bem significa, pois, o barulho mais intenso nas ruas agora preenchidas de máquinas por demais reluzentes, trepidantes, instintos à busca dos céus; lontras, capivaras, trogloditas, pterossauros embriagados pelas calçadas estreitas. São elas, as cercas que delimitavam o Infinito aos nossos olhos; as cores, formas, o vento forte das horas em movimento...

Conquanto pacientes de outras civilizações desaparecidas, cabisbaixos seres, tocam adiante multidões, gerações inteiras que desparecem no cruzar das serras, caravanas, quiçá instrumentos das eras que tão só deixam marcas e alimentam a imaginação dos quantos vierem. Juntos, no entanto, formulam novas construções a desmoronar no tempo impávido. Nisto, vivem, contam, cantam, dançam, formam nuvens esparsas a transcorrer os mesmos céus lá de antigamente.

Passados que foram os primeiros deslumbramentos, baixam a cabeça e viajam numa saudade atroz de si próprios que foram antes, eles que nem viver assim puderam, envoltos que se viram nas velhas paixões do inesperado. Porém existe algo talvez suficiente que lhes aguarda no silêncio da infinitude, porquanto sinais percorrem de desejo o desfazer das contrições.

Destarte, a braços com a sede de justiça, um tropel descomunal de consequências apenas transita o espaço e encobre de poeira o céu das distâncias. Soubessem de tudo, decerto contariam, quem sabe?! Tão próximos de revelar o mistério, sustentam a farsa de conhecer e transportar as teias do Destino nas suas mesmas mãos. Ofuscados pela própria consciência, admiram as pedras que nutrem sua visão e oferecem sacrifícios irreverentes nos circos e nas telas acesas.

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

A lua de outubro


Escrever é isto de copiar da tela da memória os pensamentos que ganham forma, estes corpos soltos doutros maiores sentimentos ali deixados pelos dias que não existem mais em lugar algum. Semelhantes às luas tão aguardadas nos céus, deixam marcas profundas entre as pedras do caminho e a isto se prestam as palavras, blocos intensos que rompem o trilho de nós mesmos e desafiam a lei da gravidade no coração desconhecido, pedindo arreglo a essa força descomunal de existir, somente isto.

Por mais quiséssemos, ver-nos-íamos face a face com este espaço ignoto que ora somos, vazios em movimento aos olhos dessa força que tange o Infinito e seus olhares intensos dentro da alma da gente. Nisto, são notícias, sons da natureza em volta, silêncio descomunal a preencher planícies e vales de acordes e lembranças fortuitas. Nós conosco próprios, películas virgens da solidão inevitável.

Pudéssemos, então, encontraríamos tesouros inestimáveis nas profundezas do Ser, porquanto dele seremos partes integrantes largadas neste universo das horas. Tocaríamos, passo a passo, as paredes do firmamento e buscaríamos ansiosos a porta da compreensão, vultos que assustados de si e de outros. Algo, no entanto, perfaz de cores as conchas do destino e contemplamos as luzes à espera do que virá sempre das bordas deste tudo avassalador a determinar o giro dos astros na distância em volta.

Disto, das multidões de cada um, nascem os segredos que determinam o justo motivo do quanto existe durante todo tempo. Perante o calor deste momento dagora, Sol intenso rebrilha na Eternidade a deslizar pela imensidão deste oceano encantado das alturas. Daí, desses pequeninos seres vêm as raízes do mistério donde virão todos novos sonhos já agora inscritos nas alturas  infindáveis logo aqui adiante.

segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Domínio solitário


Nas horas de tardes mornas, quando apenas os pardais escarcaviam o silêncio das árvores de outubro há pouco refolhadas no calor da estação e o rádio toca velhas canções de saudade, o coração da gente sacoleja no peito falas de um jeito surdo nas apreensões da solidão. Da lucidez do momento, algo sagrado reponta nas frestas calorentas das janelas fechadas. Nisso, andarilhos idiotas param nas esquinas em busca de rever amores perdidos, barbas por fazer, sacos encardidos nas costas e um drama aceso nos olhos tristes. Apenas ausência de outras horas, outras terras, enquanto o relógio monótono desconta cada segundo, aos passos cadenciados dessas moendas informes nas entranhas, que pedem paciência de mãos estendidas ao infinito dos céus intenso e de poucas nuvens.

Aqui dentro, nesta sala enorme de vazios preenchidos de trastes provisórios, na luz da esperança contida nos sonhos que desvanecem de manhã, a.fome sorrateira de novidades se arrasta preguiçosa pelas galhas retorcidas de um cajueiro no jardim. Lágrimas em poças ainda recentes rebrilham mais que as tintas  dos carrões de luxo que deslizam entre motos e semáforos, rápidas bólides que fogem nas malhas frias das ilusões desfeitas, enquanto uns silêncios impacientes de novo apresentam seus credencias às portas do calor em curvas ascendentes.

Quer-se fazer assim de modo à toa coisas antes feitas de forma inútil, para reter o tempo em nós, porém as faces do presente reclamam folhas novas às árvores da vida. Pois amores flutuantes ainda persistem nas trilhas do depois, acalmando a sede exangue de prazer que fustiga os sentidos, num clamor de rês desmamada, sabendo, contudo, ser do eterno o direito próximo dos prazeres estéreis que ficam feitos fiapos atrás e durante o percurso do espírito no caminho da luz resplandecente, nas frias madrugadas abissais.

Quereres atrozes na carne chamejante de paixão... Doces espasmos de máximas culpas... Descem os bichos à represa para beber água no açude ao sumir do dia. Eu, aqui, vulto pensante das notas siderais do ser, me olho por dentro da casa que sou e revejo possibilidades acesas na sombra que se desprende longa no estirão do sol em busca do poente. Quero a tranquilidade do vôo cósmico das garças ao longe, espantos que refulgem de tintas brancas o azul esmaecido que moldura a tarde melancólica.

Cá em mim esta oficina que desentorta pontos de interrogação em soberbas exclamações, dispostas perante todas as peças do cômodo em que me acho preso, neste entardecer das horas impacientes. Olho aflito o eu que resiste e sabe que sairá incólume do outro lado das cercas interpostas no trilho do gado que volta ao pouso, transcorrido o percurso definitivo do Sol em mais um turno.

Pensamentos feitos fumaça escorregam altivos pelas dobras da saudade e insistem na contínua fiel luminescência ecoando nas paredes toscas deste tórax ansioso, qual grito compassado e aflito de sabiás distantes, a reverberar na mata cinza o verão impiedoso de sertão sofrido, vozes misteriosas da noite que se aproxima em longas passadas inevitáveis.

Um aviso claro escreve-se no círculo solar, brasa rubra em tudo isso: Amor e paz que desfiam certezas ao coração das pessoas diante do modo de viver aquilo que nos é dado em cada vez, com força e persistência da certeza definitiva da verdade.

(Ilustração: Fahrenheit 451, de François Truffaut).

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Nesse mar de consequências



Quando as palavras insistem de vir à tona e contar do que acontece pelo meio deste mundo nesta fase da História, daí as mil interpretações e tantas ocorrências assustadoras. Quer-se, sem dúvidas, achar um lugar aonde pudéssemos encontrar a paz sonhada desde sempre. No entanto, frutos do que plantam todos, de raras exceções, eis o panorama global outra vez em lutas fraticidas nos diferentes quadrantes. Espécie de resultados inevitáveis, quiséssemos com gosto e as marcas ficam gravadas no solo do Planeta.

Bem que gostaríamos de identificar histórias menos drásticas, contudo, contingências determinam dores e aceitar que seja assim sem novidades no cardápio da Civilização. Povos contra povos; nações contra nações, a pretexto das intenções de poder; isto a lembrar os tantos sonhos de harmonia espalhados ao vento pela Arte. Das conquistas da raça, a política nasceu dos novos métodos de aperfeiçoamento da sociedade, evolução de inúmeras gerações, intenção firme de revelar práticas coletivas de convivência através da organização racional entre os grupos.

Porém, do quanto até aqui consideramos, também nessas virtudes ora persistem os jogos egoísticos de causar espanto, a pretexto dos interesses individuais, jogando ao léu o que haveria ser de avanço inigualável. E os fortes pela força bruta seguem a dominar as maiorias, feitos as mesmas feras do princípio, agora sob o poder de arsenais jamais vistos.

Nisso, por mais desejemos melhores considerações que alimentem sonhos prazerosos, o cenário pede evolução de valores e dias felizes, desejo dos bilhões que habitam o Chão. Algo propenso a refletir o nível de aprimoramento social significa tão só dramas intermináveis e repetitivos, tais resultantes das personalidades que preenchem os quadros de comando, sintoma, talvez, do quanto conseguíssemos obter noutras intenções favoráveis à solidariedade e progresso, numa triste aceitação.

(Ilustração: Caos, desenho de Roberto Riolo (Itália).