Desde cedo, naquela tarde, Tia Vanice
resolvera se dedicar a decorar o andor de Nossa Senhora da Conceição para a
festa do dia seguinte, a ter como ponto alto uma procissão pelas estradas do
Tatu, percorrendo paredes dos três açudes chegando até a cancela do Xique
Xique. Depois, já de noite, aconteceria a coroação tradicional, em frente da
pequena capela, acompanhada de missa que reuniria, como nos anos anteriores, os
habitantes e a vizinhança do lugar.
O andor, peça bem torneada, passara
guardado o ano todo, a ser usado tão só nos festejos da Padroeira. A maneira de
enfeitá-lo mudava de pessoa a pessoa, conforme habilidades. Uns preferiam
forrar de seda rosa, azul ou branca, com algodão à guisa de nuvens. Daquela
vez, fora escolhido o papel crepom de cores suaves.
As várias folhas recortadas e coladas a
grude de goma envolveram o nicho de transporte da Santa, ficando de fora apenas
os braços de apoiar nos ombros dos carregadores. Tia Vanice dedicava, pois,
todo seu carinho no amarfanhar dos desenhos de papel cortado, realçado as
flores do arranjo colorido. Esmero maior impossível, obra-prima da sacra
elaboração. No feitio da devoção agreste, lá pelos páramos celestiais, a
virgem, decerto, sorria agradecida de contente.
Recolhidos os instrumentos da tarefa,
agradecimentos apresentados às auxiliares da boa ação, que também haviam lavado
o piso da igreja, espanado e recamado de toalhas brancas os altares, fim de
tarde perfeito de quem satisfizera o dever e agora apreciava da calçada
fronteira as tonalidades vivas do Sol se despedindo, no poente sertanejo.
Naquele mesmo momento, retornavam ao
aprisco as ovelhas; umas mais, outras menos, apressadas, a formar, elétricas, o
rebanho único, na busca do chiqueiro próximo da igrejinha, junto da casa de Seu João Preto. Nisso, alguns dos
animais que catavam o que comer arriscaram uma espiada furtiva para dentro do
templo que permanecia de portas abertas.
A criação, talvez tenha pressentido
qualquer coisa de alimento na fofura decorada do andor, deu em cima da bela
composição de papel, devorando-a até chegar à madeira, motivo suficiente das
lágrimas sentidas, desconsoladas, da tia, notificada ao som das gargalhadas
travessas de meu pai, que, comovido, ainda encontrou tempo e material para
refazer todo o trabalho antes do início da procissão.
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