Nos finais das tardes ele surgem a contar suas aventuras lá pelos
porões sombrios em que passa a maioria das horas. Sabe mais do que o
necessário, quero crer, vez utilizar tão pouco daquilo que carrega nessas lembranças.
Mergulha numa espécie de domínio até aqui inexistente aos esteja de fora, até a
mim mesmo, seu pretenso sucessor, surpreso que o vejo nessas ocasiões de lhe ouvir
as confidências de momentos lá de longe, da infância, doutros vínculos, doutras
pessoas... Falas, músicas, paisagens... A não dizer doutros territórios mentais
difíceis de compreender. No entanto, insiste existir a todo preço. Quer
conversar; a custo sair daquela solidão de seu habitat... Dizer, falar, trazer
histórias de filmes vistos, de livros lidos, saudades, inexplicáveis segredos
guardados, sentimentos remotos deixados pelo caminho. Bem liberto qual seja,
impõe condições de linguagem, de seres iguais impossíveis de ser, das vivências
ali supostamente perdidas no matagal das outras tardes, manhãs e solidão.
Fala comigo, sim, na maior sem cerimônia, numa espontaneidade
de causar espécie, ainda que ciente de habitar esse outro território que nem
sei lá aonde fica, porém de certeza que também ocupa o juízo que ora sou, e
convive no meio dos trastes e contrastes que carrego vida a fora. Transita numa
intimidade de causar espanto, pois conhece de mim uma dosagem superior ao saber
das recordações das tantas oportunidades muito além do que eu próprio; nalgumas
delas em nitidez surpreendente. Isto porque refaz aquilo abandonado das
inconveniências, dos percalços, transes a fio, e despeja em cima da mesa da
sala de jantar, e traz de volta num sorriso assim maroto, meio irônico, de intimidade
quiçá agressiva seja, cúmplice e reflexiva. Olha nos meus mesmos olhos e
desafia a que reviva com graça essas situações de sangue frio, sem ânsias,
amarguras, etc.
Bom, que ele persiste dias constantes quem eu não sou a
duvidar. Silenciosamente observa da janela do alto da gente minhas reações ao
que revela, isso num fastio de memória apreciável, às vezes sórdido, doutras calmo,
como quem quer achar alguém que lhe escute, a vencer tamanha solidão do que é
feito e se recolher em seguida ao sótão em que mora, lá no alto da escada de um
dos cômodos da casa dos meus avós, na fazenda em que nasci. Um personagem
arisco, livre pelos campos das chapadas, dos eitos distantes daqueles mistérios
fincados dentro de mim, indo aos poucos desaparecendo ao chegar as primeiras tintas
escuras da noite, decerto a me aguardar no sono, daí adiante, quando, então,
tomará, de todo, o meu viver, ao despertar pelo fervor dos sonhos, seu lugar, de
que será o autor absoluto.
Nenhum comentário:
Postar um comentário