quarta-feira, 3 de setembro de 2025

Um outro eu que mora aqui

 

Nos finais das tardes ele surgem a contar suas aventuras lá pelos porões sombrios em que passa a maioria das horas. Sabe mais do que o necessário, quero crer, vez utilizar tão pouco daquilo que carrega nessas lembranças. Mergulha numa espécie de domínio até aqui inexistente aos esteja de fora, até a mim mesmo, seu pretenso sucessor, surpreso que o vejo nessas ocasiões de lhe ouvir as confidências de momentos lá de longe, da infância, doutros vínculos, doutras pessoas... Falas, músicas, paisagens... A não dizer doutros territórios mentais difíceis de compreender. No entanto, insiste existir a todo preço. Quer conversar; a custo sair daquela solidão de seu habitat... Dizer, falar, trazer histórias de filmes vistos, de livros lidos, saudades, inexplicáveis segredos guardados, sentimentos remotos deixados pelo caminho. Bem liberto qual seja, impõe condições de linguagem, de seres iguais impossíveis de ser, das vivências ali supostamente perdidas no matagal das outras tardes, manhãs e solidão.

Fala comigo, sim, na maior sem cerimônia, numa espontaneidade de causar espécie, ainda que ciente de habitar esse outro território que nem sei lá aonde fica, porém de certeza que também ocupa o juízo que ora sou, e convive no meio dos trastes e contrastes que carrego vida a fora. Transita numa intimidade de causar espanto, pois conhece de mim uma dosagem superior ao saber das recordações das tantas oportunidades muito além do que eu próprio; nalgumas delas em nitidez surpreendente. Isto porque refaz aquilo abandonado das inconveniências, dos percalços, transes a fio, e despeja em cima da mesa da sala de jantar, e traz de volta num sorriso assim maroto, meio irônico, de intimidade quiçá agressiva seja, cúmplice e reflexiva. Olha nos meus mesmos olhos e desafia a que reviva com graça essas situações de sangue frio, sem ânsias, amarguras, etc.

Bom, que ele persiste dias constantes quem eu não sou a duvidar. Silenciosamente observa da janela do alto da gente minhas reações ao que revela, isso num fastio de memória apreciável, às vezes sórdido, doutras calmo, como quem quer achar alguém que lhe escute, a vencer tamanha solidão do que é feito e se recolher em seguida ao sótão em que mora, lá no alto da escada de um dos cômodos da casa dos meus avós, na fazenda em que nasci. Um personagem arisco, livre pelos campos das chapadas, dos eitos distantes daqueles mistérios fincados dentro de mim, indo aos poucos desaparecendo ao chegar as primeiras tintas escuras da noite, decerto a me aguardar no sono, daí adiante, quando, então, tomará, de todo, o meu viver, ao despertar pelo fervor dos sonhos, seu lugar, de que será o autor absoluto.

Nenhum comentário:

Postar um comentário