sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

O peso das memórias


Qual quem transporta vida afora uma caixa de significados, conduzimos nossos passos. Junta daqui, junta dali, num afã de vaidades ativas, formamos o traste desse fardo e tocamos com ele adiante. Feitos alimárias (bestas de carga), transportamos a nós mesmos. De olhos fixos na beira das estradas, arrecadamos quinquilharias que preenchem a tal bagagem. Lembro meu avô paterno, que possuía um baú aonde recolhia o que visse que um dia lhe prestaria algum favor, ainda que esse dia nunca chegasse. São restos de qualquer objeto, clipes, folhas de meia face branca, ligas de dinheiro, porcas de parafuso, pregos quase enferrujados, canetas pela metade, algo que, mesmo fora do âmbito da hora, servisse lá um tempo a qualquer finalidade.

Assim somos nós, a recolher nomes e definições de todo jeito, pedaços largados nas bordas de caminhos, fragmentos da vista da gente que guardem sentido que seja. Pois disso vive a memória, de rescaldos ansiados do sumo que corre ligeiro entre os dedos. Tal desesperados da sorte de ver sumir as nuvens desse céu que o contemplamos em si, iremos ser, por certo, meros colecionadores de aparências. Heranças do que vimos e fomos, acumulamos nesse caldeirão de sonhos, à busca do definitivo lugar.

Frente a essas carcaças de histórias findas, dos rios que deslizam céleres rumo a oceanos imaginados, bem aqui vamos tangendo o barco das testemunhas e dos desaparecimentos, a dizer as palavras, fixar as datas, repetir as versões e desfiam o novelo da memória a nós e aos outros, mágicos da imortalidade. Meninos, eu vi, em volta das fogueiras, nos poemas de antigamente.

Lembro, como se fosse hoje, das pessoas com quem estive, das paixões efervescentes de idos e vividos; das provas e lutas no meio de dores e esperanças; dos amigos, das festas, dos livros, filmes, familiares queridos que seguiram antes rumo ao desconhecido; das músicas que ressoam a qualquer dia, nas lembranças e saudades; dos invernos, das viagens, passeios que deixaram marcas inesquecíveis; das cidades; um tudo afinal desse carrossel deslumbrante das eras que se foram e continuam intensas na alma, uma certeza inevitável de ser assim até nunca mais.

(Ilustração: Alegria de luxúria, de Hieronymus Bosch.

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