quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Equívoco

O marido libertino se imiscuíra na farra com duas ou três senhoritas e mais alguns cúmplices, percorrendo folgazão os barzinhos afastados, preferência da marginalidade. Entraram de ponta-cabeça na programação alternativa, dispostos a reverter o clima de tristeza que chegara junto com as preocupações financeiras dos dias críticos do novo modelo econômico nacional e a repercussão nas suas atividades. Vá lá que fosse assim.

Pança cheia do mel, juízo tonto, zoeira no mundo, trilha estridente de carros acústicos, enquanto o marido beijava mais do que de direito, na onda do faz de conta. Muito furdunço nas latadas, na alegria postiça que por vezes se instalava. Tudo parecia acontecer dentro das melhores previsões. Festa de ninguém botar defeito, como dizem. Embalo geral.

Ainda assim, um grilo fervilhava nas dobras da cabeça do homem. Alguma coisa não batia bem, algo ficava faltando naquele clima. 

De revisar a memória, se lembrou de que era a noite do sábado em que ele e a mulher deveriam apadrinhar o casamento da filha de uma amiga dos dois. - Xiiiiiii... - não deu noutra, restava desconversar os boêmios e cair fora do bloco dos prazeres fáceis.     

Arrepiou firme. Chegou em casa atrasado só o tanto. Esposa e filhas prontas, de caras amarradas, olhos fuzilantes, reclamavam mais do que bode embarcado. Rápido cuidou de se banhar, investir-se no paletó, juntar forças para recolher a sogra, que protestava a demora por meio do telefone que só parou de tocar quando trancaram a porta e seguirem no prumo da igreja, num tempo quase insuficiente.

Meio do caminho, lotação completa e resolveu de conferir se as coisas improvisadas funcionavam a contento, livre das surpresas de última hora. Nisso, olhando embaixo, à frente do banco dianteiro, notou a indesejada presença de uma sandália das que usavam as moças com quem andara. Frio intenso lhe percorreu todo o corpo, descendo e subindo a espinha dorsal, mistura de medo e preocupação. 

Não contou conversa. Desviou para o trânsito a atenção das passageiras, e, abaixando-se sutil, atirou pela janela a peça indesejável, atitude que lhe refez, de pronto, as energias. Esse conforto, no entanto, durou poucos minutos, até que percebesse a dificuldade da sogra, tateando no escuro, à procura do outro par de seu calçado para que pudesse descer do automóvel e chegar na obrigação.  Aí viu que nem tudo funcionara a contento.  

(Revisitando uma das histórias de Stanislaw Ponte Preta).

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