sábado, 23 de agosto de 2014

O disfarce

Homem jovem, de cabeleira vasta, roupas coloridas, sonhou que iria receber a visita da morte. Não lhe sobraria muito tempo de permanência aqui na Terra. Dado acreditar na consistência dos sonhos, cuidou de estudar uma forma para melhor se proteger dos riscos desta vida. 

Habitava pequena cidade do interior, onde era por demais conhecido. Sem comunicar a ninguém, tratou de viajar para lugar longínquo, onde ficasse no mais extremo ostracismo.  

Instalou-se num lugar afastado, metrópole descomunal, em que ninguém daria notícia de um novo morador; refez sua aparência: raspou a cabeça, modificou o estilo da barba, da fala, comprou roupas diferentes, mais sóbrias, pôs óculos escuros, etc.; mudou por completo a antiga fisionomia. Achou também que devesse adotar outro sistema de vida e buscava sempre as multidões, as ruas movimentadas, os locais agitados, barulhentos, shoppings, praças, os espetáculos públicos, praias cheias, onde estivesse despercebido. Tudo se dava conforme planejara. Nem nos sonhos voltaria a lhe importunar a perspectiva de cedo haver de deixar este mundo.

Ia tudo bem até o dia previsto naquele sonho funesto, quando em pessoa apareceu o anjo exterminador que lhe buscava. Dirigiu-se à antiga residência da vítima potencial, na pacata cidadezinha em que a princípio viveria. - Ora, que decepção - nem o menor vestígio do freguês. 

Desapontada, a morte coçou a cabeça; de cima abaixo revirou a lista telefônica; indagou da vizinhança, de policiais, carteiros; nada; nada; inexistiam sinais do homem que transportaria para outro mundo. 

Frustrada, ela resolveu, antes de voltar, se entreter qualquer coisa, indo a passeio visitar recantos populosos, dos quais, coincidência ou não, o tal em que o freguês fora habitar. 

Na metrópole sem tamanho, bateu pernas longo tempo e chegou a uma casa de shows em que se desenvolvia festa agitada, animada por grupo de rock estridente, casa dos horrores eletrônicos. Fumaça, ruídos ensurdecedores, superlotação.

Apreciou algum tempo o espetáculo. Ainda que convidada pelos organizadores a permanecer pouco mais, resolveu desconversar e saiu em retirada; então, planejou ganhar a viagem. Antes de partir, decidiu levar alguém na companhia. Com cuidado, observou a vasta multidão. No meio de tantos esfumaçados e envoltos nos jatos de luzes coloridas, viu alguém que lhe chamou a atenção devido o crânio bem pelado, luzidio, no meio dos muitos cabeludos (era o dito homem do sonho); calculou porte, pesagem, e arrastou-o à carruagem que utilizaria na longa viagem de volta.

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