sábado, 30 de dezembro de 2023

Fronteiras da ilusão


Por volta dos anos 60, segunda metade, alguma impaciência vagava insistente pelo ar. Líamos os existencialistas franceses, ouvíamos atentos as canções de protesto e o rock aparecia pelas ruas e praças. Algo haveria de acontecer a qualquer instante. Vinham notícias pelos jornais nanicos, pelos filmes que chegavam com dois, três, anos de atraso, pelo rádio, pelas cartas. A televisão dizia pouco, assim qual os grandes jornais, que só falavam nas entrelinhas daquilo que não podiam dizer. Dentro em pouco, aconteceriam os movimentos da França, os levantes populares nos países da Cortina de Ferro e as deserções à Guerra do Vietnam. E ficávamos estáticos, à busca de compreender e agir. Vieram as notadas insones, as tertúlias, serestas, os passeios rurais com bebida, cigarro e outras temeridades, numa espécie de reação transtornada ao sistema dominante. Nisso, as viagens aos centros maiores, aonde iríamos à busca de formação profissional.

Lá então, leríamos O despertar dos mágicos, 1984, Admirável mundo novo, As portas da percepção, Laranja mecânicas, Crônicas marcianas, dentre outros. E víamos filmes de arte, frequentávamos reuniões e palestras, festivais de música, shows, num afã de respostas a qualquer custo. E mais livros, dessa vez os de ficção científica, suas histórias maravilhosas de reinos diferentes, longe que fossem daqui da Terra. a falar de civilizações exóticas em que descobrissem meios outros de transformar a natureza humana, ainda hoje nesta fase de aprendizado quase primitivo, de guerras e fome, divisões e reinos boçais.

Tudo sob o crivo de experiências mil, testes avançados na própria pele, nos rascunhos das memórias mais antigas, quais houvesse semelhantes regressos a mundos imaginários de tantas aventuras errantes. Um desfilar de incompreensões, talvez até propositais, frutos da inércia e da pouca iniciativa. São essas as gerações que se sucedem no mesmo crivo de submissão à força desses valores da ilusão que predominam entre os povos daqui deste chão. Enquanto isto, qual todo sistema, dispomos na própria alma da função precípua de cura do atraso que tanto padecemos desde sempre. A função do encontro consigo mesmo, na real finalidade a que estamos existindo em vida.

(Ilustração: Alegoria da luxúria, de Hieronymus Bosch).

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