quarta-feira, 3 de abril de 2019

Os autores das lendas

Quase não temos movimentos maquinais cuja causa não possamos encontrar em nosso coração se soubermos procurar bem. 
                                                                        Jean-Jacques Rosseau

Às vezes me pego a ouvir por dentro músicas de antes, lá do tempo de detrás, das épocas quando vivia mais intensamente sonhos e melodias, e surgem, de repente, largados pelas paredes distantes do tempo essas vagas no vento, as mesmas, iguais, emoções daquelas horas. São pedaços inteiros de harmonia que restam assim gravados nem sei onde, contudo quais vivos traços de existências que jamais morreram e viajam gravados nos porões da memória, de mim escondidos, penhores daquelas ocasiões inesquecíveis. 

Dia desses conversava com Gabriel, meu neto, que falou existirem estudos da permanência das ondas emitidas pelas máquinas humanas que sobrevivem nalgum lugar, firmes nas formas em que são feitas, que nunca desaparecerão. Sinto algo parecido quando ouço essas músicas que me marcaram com força, sobremodo as que tocam mais dentro as fibras do coração, mexem com a gente, quisesse ou não. Resistem nas notas, frases melódicas, com tal intensidade que regressam em frases inteiras de sentimento, saudade, ansiedade, valores, sintomas daqueles eus que fora naqueles momentos.

Nisso as lendas, senhoras madrinhas de longas histórias de um passado interno das criaturas que persistem para sempre nos refolhos dos mistérios assim bem guardados. Quais feiticeiros dos contos fantásticos, elas recontam as noites estreladas no passeio pelo eterno. Revivem próprios os roteiros das vivências e suas lições, tocam suavemente com a ponta dos dedos os sulcos da permanência e trazem de novo o sabor das viagens e aventuras. 

Calados, quietos, velhos bruxos de antanho, em fases obscuras, mantém silêncios sepulcrais, no entanto entes imortalizados das horas fervilhantes, o coração das sombras no vales que fertilizaram os céus. Estranhos seres de outras dimensões, sujeito andarem aqui junto de nós, porém reservados sacerdotes dos reinos do Porvir, habitantes do país das lendas a que todos nós pertencemos.

(Ilustração: Colagem, Emerson Monteiro).

Um comentário:

  1. Vez por outra nooos deparamos com estes restos de cheiro, que marcaram como a ferro e fogos as nossas lembranças do passado que por mais que fujamos delas insistem em bater em nossa porta trazendo de volta o que ficou no passado e que não temos como reavê-lo. Belo texto. Um cariunhoso abraço ao amigo Emerson Monteiro meu escritor preferido.

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