quinta-feira, 7 de julho de 2016

Acordes noturnos

Nalgumas horas voltam as músicas embuçadas no tempo de quando sozinho vivíamos eu, o apartamento, as máquinas. O som, a geladeira, o fogão, o rádio, eram meus companheiros de presença física. À menor sacudida, lá estávamos a papear nos assuntos da hora. Qualquer movimento ganhava intensidade e conversavam comigo durante os vários momentos domésticos. Sete longos meses assim. Deixara há pouco a primeira experiência a dois, o primeiro casamento. Morava em Salvador, na Barra Avenida, Rua Raul Drumond, Edifício Oxalá. Televisão, nem pensar, não curtia nem um pouco, o que ainda hoje persiste, a não ser, vez ou outra, um noticiário, algum filme bom (coisa rara), documentários. Na época, saía nas noites à cata dos cinemas que exibissem filmes de diretor, o que era comum nas salas baianas. 


Solitário, usufruía do gosto pela fotografia, que me acompanha desde menino. Montava um laboratório na cozinha por cima da pia, banheiras, ampliador. Quando revelava ou ampliava as fotos, em preto e branco, naquele dia fazia fora as refeições, em restaurantes macrobióticos, donde trazia pão integral, tahini (pasta árabe feita de gergelim), leite, frutas, com que abastecia a geladeira e rivalizava o uso entre os químicos da fotografia. Entrava forte nas noites o som, ligado em Frank Sinatra. Gilberto Gil. Luiz Gonzaga. Caetano Veloso. Maria Bethânia. Gal Costa. Elomar. James Taylor. Carole King. Neil Diamond. Ella Fitzgerald. Gonzaguinha. Tomzé. Louis Armstrong. Outros e outros. Eram longas viagens noite adentro, no ventre do silêncio. Espécie da saudade do que ou de quem nem sei mais dizer. Recorria aos artifícios das possibilidades e dialogava junto aos barulhos distantes, nas ruas, nos carros que ocasionalmente transitavam rumo à Ladeira da Barra, ou à Rua Princesa Isabel. Ninguém, vivalma, a não ser tais ruídos harmoniosos e a escuridão dominando a câmara improvisada do laboratório. Exausto, lá pela madrugada, recorria aos lençóis e dormia insistindo em conhecer o mundo interno de mim. 

Quando, agora, ouço algumas músicas, lembro daquela fase de tempo, a rasgar as sombras da escuridão e chegar bem próximo de meu coração ainda impaciente na faina de existir a qualquer custo diante da beleza dos acordes. Enquanto a saudade, muita saudade, percorre as estrelas, a Lua, que vagam pelos céus, nos ventos da Serra que, então, deixara atrás no Cariri. Isso a revelar fome intensa de viver e sonhar de que tanto me conta a arte e a cultura, nas dobras do sentimento.

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