Elas eram duas, no início do sonho, semelhantes um tanto, ambas de cor bege claro, porém uma menos afilada; a outra, burilada nas extremidades, sendo desta é que se poderia tirar algum som primoroso. E naqueles instantes iniciais, foram tratadas de igual modo. Havia movimento em volta, qual arrumação de mudanças, de viagem. Muitos objetos, sacolas, instrumentos soltos entre peças. Arruma daqui, arruma dali, enquanto nem de longe se pensara com cuidado naquelas duas pequenas varetas, sendo uma delas a flauta de que, só depois, haver-se-ia de considerar a real valia na continuidade do que viesse pela frente.
Bom, nisso, dali adiante, o sonho viraria a busca contínua, não pelas duas peças, mas pela flauta, agora reconhecida que estava da sua função. Aonde pudesse estar, ali as atenções seriam voltadas com extremo zelo. Tal de revirar até as equipagens já fechadas, os móveis, caixas, tudo em volta, a imaginar sua procura na ausência. Às vezes, também debaixo d’água, nas sucatas esquecidas, na imaginação. A mim coube, na função de sonhador, indicar possíveis lugares onde estivesse. Lembrava, dalgum modo intuitivo, e lá corriam à cata de encontrar. Notava, no entanto, espécie de sadismo nos que estavam buscando, eles alimentando a certeza de nunca mais achar a bela peça donde nasceria o senso de uma razão absoluta, a música pura.
...
Transcorridos que foram aqueles esforços de localizar a flauta perdida naquele sonho, ao despertar vieram as primeiras avaliações do que aquilo significava. Estuda daqui, dali, no vácuo dos pensamentos, das cogitações. Dúvidas não persistiam, no entanto, da clareza da história vivida nessa aventura do Inconsciente. A força, o impulso, de desvendar o mistério das cenas daquela noite, daí, então, tanto e tanto, veio revelado no meio dos trastes em organização, vendo claramente ser a flauta perdida a pureza original. Das quantas oportunidades havia naquele esforço de ordenar a bagagem do que quer que fosse, a seguir nalguma direção, de comum esquecemos de considerar a importância dessa flauta primeira, origem do quanto existe de verdadeiro na consciência em formação.
(Ilustração: Anjo tocando flauta, de Bernardino Luini (Arte do Renascimento).
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