sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Crise de identidade

Ele, um trabalhador da roça desses que vivem para a família, mulher, filhos e os bichos da vazante. Porém se internava nos matos e quase nunca buscava a rua, não fosse no dia da feira. Juntava os trocados e comprava o pouco que precisava, querosene da lamparina, sal, alguns metros de pano, agulha, linha, comprimidos, arnica, coisas de cidade, porque do resto fornecia o patrão por conta do saldo no fim da safra.

Orientado pela mulher, arrastou os currulepos na rodagem e foi buscar, além das rotinas, dois quilos de toucinho salgado, a encomenda especial daquela vez. Sobrasse qualquer troco, cortava o cabelo, rapava barba e bigode, pois o eito lhe deixara parecendo o pai da mata, lhe dizia a companheira, preocupada com o desleixo do marido.

Agiu obediente. Andou nas vendas. Cumpriu à risca o determinado. Quanto a tirar cabelo, barba e bigode pensou mais de duas vezes. Dinheiro coçando no bolso, avaliava jogar no bicho, almoçar na pensão de Galdina, ou calibrar umas e outras das bebidas fortes. Escolheu a terceira alternativa, puxado pelos colegas, que nessas horas chegam sempre.

Na bodega, mãos ferradas na compra, bebeu de cachaça a conhaque o que restava do dinheiro, espírito ligado em voltar à casa, aonde seguiu tão logo escureceu.

Já andava meio penso quando o mundo rodou nas vistas e foi arreando o peso do corpo sob efeito da bebida. Tombou estirado no barro e ali permaneceu até que passassem os dois barbeiros com quem contaria o cabelo, que moravam no mesmo rumo para onde seguia. Ao notarem caído na beira da estrada o freguês cabeludo, barbado, de pilhéria, resolveram raspar a zero a cabeça do homem, limpando de quebra também a barba e o bigode.

Terminavam o ofício e perceberem o saco das compras. Examinaram o que havia dentro, pegaram o mercado de toucinho e levaram a preço do serviço que acabavam de executar.

Daí mais com pouco, o caboclo despertou, só preocupado em rever a família. Esfregou o rosto, viu que a barba e o bigode que desapareceram. Alisou as duas mãos na cabeça pelada, lustrosa, diferente da véspera. O cocuruto liso lhe causou susto.

- Êpa! Esse não sou eu, não sou! – reagiu incontinenti.

Correu e abriu o saco da feira, sem, no entanto, achar o toucinho.

- Não disse que esse não sou eu! Cadê o toucinho da mulher que tava aqui? – se angustiou.

Parou. Pensou. Juntou os restos que sobraram no saco e partiu desconsolado. Andou... Andou... Numa das dobras da estrada, viu a casa humilde onde vivia, crescendo na preocupação. O escuro da noite quase envolvia o mundo todo.

Apressou o passo quase chorado. No juízo, fervilhava a pergunta: Quem poderia ter tomado seu corpo, que aquele não era mais o dele?! Não era ele, tinha certeza.

Chegou apreensivo, bateu palmas, escutou a voz familiar da companheira. Ganhou alma nova. Sarapantado, se mostrou à luz do lampião da sala. A mulher quando viu aquela figura pelada exclamou:

- Seu cachorro, isso é hora de chegar? E por cima melado, depois de fazer um estrago desses no cabelo, sujeito! 

Então, mediante as palavras velhas conhecidas, refeito da apreensão, o maturo correu animado e abraçou a esposa, enquanto repetia:

- Ah, graças a Deus! Vejo agora que sou eu mesmo, minha velha! Sou eu, Maria!

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