quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Os Anicetos

Manifestações culturais têm na música sua maior expressão, repassando desde as mais priscas origens, sentimentos que nos chegam intactos pela magia do som. Os povos letrados inventaram as cifras, para transmitir, através da História, suas produções, nas partituras de sete notas, visando reanimação posterior.

Entretanto quem codifica a trilha sonora das culturas simples, pobres, sem códigos gráficos? Como saber o que tocaram e cantaram os ancestrais, à margem da caligrafia e do papel? Como reviver seus segredos e descobertas musicais?


A resposta vem sendo dada pelo homem rude, por intermédio da tradição oral dos períodos remotos, nos instrumentos, ritmos e melodias, qualidades recriadas geração a geração, tais fios invisíveis de ordem subjacente, que dispõe de uma ciência (o folclore) a estudá-la, pesquisando heranças de cada grupo na estampa cronológica da cultura.

No Cariri cearense, vivemos juntos de amplo patrimônio dos valores antigos, desde rico passado da origem indígena, nos troncos inca-tupis, até a robusta bagagem do imigrante europeu trazida pelo ciclo do couro, no século XVIII. O folclorista J. de Figueiredo Filho foi quem mais se interessou pelos estudos desse acervo, auxiliando inclusive na criação do Instituto Cultural do Cariri e divulgando ao resto do País os cabaçais dos Irmãos Aniceto.

Esse conjunto de couro apresenta cinco hábeis instrumentistas: catargo (ou casal de pratos), caixa, zabumba e dois pífaros (pifes, ou pífanos), peças tocadas pelos músicos de uma mesma família, irmãos e primos, Cícero, Britinho, João, Raimundo e Antônio, que vivem da agricultura sem terra, plantando nas encostas e brejos próximo de onde moram, no bairro da Batateira, em Crato.

Segundo informações de Antônio, um dos pifeiros, o grupo remonta o tempo de seus avós, que ensinavam aos filhos desde os ritmos às danças, quais baião, maneiro-pau e reisado, passando pelos rojões, galopes e marchas. 

Os títulos das peças falam bem dos conteúdos pitorescos da peças musicais: Marcha rebatida, ... de chegada, ... de estrada, Solta, Manhoso, Pé duro, O cachorro, O caçador e a onça, Baião gigante (A briga do galo), A dança dos facões (representando as lutas de espada dos antigos), O tiramento do marimbondo, O casamento da cauã com o gavião, O casamento dos sapos (quando é para começar o inverno), O caboré, O camaleão, para citar algumas, em acordes diferentes, e muitas mais, gravadas apenas na memória, sem o adjutório dos livros, depois trazidas de ouvido, portando com sacrifício e apuro. 

Eles vêm divulgando, há oito décadas, esse substrato cultural das populações humildes do sopé da Chapada do Araripe, pelo Brasil afora, desde Porto Alegre (onde se apresentaram na década de 50, pela primeira vez fora da Região), até Brasília, Rio de Janeiro, Recife, Fortaleza, cidades do interior do Estado, em muitas das quais por várias vezes, chegando também na Europa, em viagem a Portugal. Isto sem avaliar os trabalhos cotidianos nas festas comunitárias, exposições, feiras, folguedos religiosos, forrós e festas, despejando alegria na alma das pessoas.

Alguns dos componentes fabricam e vendem os instrumentos que executam, sobretudo o pife, feito de taboca (bambu) vazada com furos, modelo da primitiva flauta indígena.

Numa reverência que bem merecem os Anicetos, artistas natos, provindos de lares humildes, heróis sem maiores reconhecimentos, porém que persistem na democracia dos sonhos, na arte verdadeira.

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