Tudo na fazenda gira em torno
dele. Principal reservatório do Tatu, a fazenda em que nasci, e que dispõe
também do Açude Novo. O Açude Velho sempre marcou a vida naquele lugar, pela
altura e extensão de sua parede, na qual transitaram comboieiros, viajantes e
os primeiros automóveis da antiga estrada do Cariri a Fortaleza.
Nessa parede, em princípios do
século XX, diante de chuva descomunal, dona Fideralina atravessaria madrugada
inteira de angústia, a andar para cima e para baixo, em sua cumeada, de rosário
nas mãos, a pedir que a cheia amainasse e mantivesse a barragem intacta, o que
não aconteceria, pois antes de nascer o Sol seria essa a única vez em que a
represa arrombaria, levando no eito toda safra de cana situada no brejo abaixo,
prejuízo de um ano inteiro de trabalho.
Histórias outras transitam pela
memória dos que viveram e vivem às margens daquelas águas, de vultos noturnos
que desciam do beco do engenho e desapareciam no seu leito, sem deixar qualquer
vestígio ou referência nas coisas materiais.
Nas três represas cobertas de
capim de planta, no período de estio, e de aguapé e babugens, nas cheias,
pululam marrecas, rachanãs, galinhas d’água, socós, num festival de sons, penas
e cores, a torná-las parte dos mistérios profundos das águas insondáveis,
avistadas quais espelho infinito do oitão da casa grande, lá no alto.
O banheiro limpo, na borda
próxima da casa, ao qual meu avô descia ainda no lusco-fusco das madrugadas
para a higiene matinal, serve de logradouro nas manhãs de domingo, alegria da
meninada e ponto de encontro dos adultos em farra.
Nas águas do Açude Grande aprendi
a nadar no estilo sem estilo dos caboclos, nos banhos coletivos, a jogar
cangapé e me aventurar em travessias mais longas, a demonstrar coragem ou
afrontar a sisudez dos mais velhos.
Há notícias de pessoas tragadas
pelas águas, só encontradas no porão, lugar de maior profundidade, devido a
vela acesa numa cumbuca, causando espanto às crianças que escutavam os relatos,
sobretudo em noites estreladas, no alpendre da casa.
Certa ocasião, inícios da década
de 60, levado por meu pai, presenciei uma pescaria em toda área do açude. As
águas baixaram tanto, por conta de invernos deficientes, que marcaram data e
trouxeram os habitantes da redondeza numa ação comum. Nunca vira tanta gente
reunida quanto daquela vez, quase na lama, com água pelos joelhos; um
formigueiro de pessoas, a fim de não perderem o peixe, no risco do total
esvaziamento das águas.
Landuás eram os instrumentos mais
usados, seguidos de tarrafas e galões, nas diferentes malhas. Ao peixe nenhuma
chance se daria. Dentro de pouco tempo, as enfieiras, os sacos e outros
recipientes esborrotaram dos exemplares de tamanho variado, curumatãs, trairas,
piaus, pescadas, mandis, e até cágados e muçus; ali não existiam piranhas ou os
atuais tucunarés, tilápias e tambaquis.
Em torno das águas do Açude Velho
ainda hoje repousa a história da comunidade, que delas se alimenta, os poucos
habitantes que ainda restam na fazenda, vida que nutre a vida que delas se
nutrem há perto de três séculos, sem parar um único dia.