quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Domingueira

Meus avós maternos constituíram família morando em um sítio dos brejos da Batateira, em Crato, Sítio Monte Alegre. Ali mantiveram engenho de rapadura e alambique de cachaça, atividade tocada, com a morte de meu avô, Antônio Bezerra Monteiro, sob as ordens de meu Tio Quinco, dos irmãos o mais velho, que passaria a conduzir os irmãos devido aquela ocorrência, em 1946.

Os brejos do Crato ainda hoje preservam a cultura da cana-de-açúcar, adaptada às terras arenosas e férteis, realimentadas no húmus das cheias anuais do rio Batateira, a transferir o rescaldo das matas da Chapada através das encostas da Serra do Araripe.

Na minha infância, conduzido pelos irmãos de minha mãe, passei inesquecíveis momentos de moagens junto da comunidade formada pelos habitantes do lugar. Que lembro, havia o engenho de Tio Ramiro, irmão de meu avô, vizinho ao deste; o de Dona Morena, um pouco mais distanciado para as bandas do São Bento, na seqüência do rio; o de Felipe Bezerra; o de Dr. Antenor; o de Seu Aldegundes; estes os principais, todos movimentados de cambiteiros, moradores, proprietários e familiares; animais de trabalho, de criação; sobretudo nas épocas da quebra da cana, por volta do mês de julho, período das férias escolares.

Tio Quinco, também meu padrinho de batismo, trabalhava com empenho durante toda semana, porquanto sobre os seus ombros pesou a educação dos irmãos. Desde jovem, chamou a si tal responsabilidade que cumpriria à altura nas décadas posteriores.

Os domingos, contudo, reservavam a passeio tradicional ao Crato, aonde se chegava por três quilômetros de caminhos precários. Depois da semana de trabalho, vestia do bom e do melhor. Impecável, adotava quase sempre calça branca de linho, engomada no capricho; a pano passado, uma camisa distinta, de cambraia em azul claro; cinto de couro de jacaré, adornado com estojo dos óculos “Ray-ban”, companheiro inseparável; sapato de cromo alemão; e os cabelos castanhos engomados de fortes camadas de brilhantina, grudavam no couro cabeludo, resistentes a qualquer pé-de-vento.

Galã típico dos anos 50, padrão imortalizado nos filmes de Hollywood em fase de ascensão, desfilaria seu charme na praça Siqueira Campos, depois da missa matinal da nove, junto dos amigos de turma, a flertar belas jovens da fina flor interiorana. E ao cavalgar o lombo da moto BSA verde que possuía, enfeixava os detalhes restantes do modelo característico daquele período dourado.   

Lá um dia, no entanto, registrou-se quebra de roteiro.

Após ultrapassar a cancela da propriedade, fiel aos trajes descritos, em cima da ligeira motocicleta, logo, logo, num dos sulcos da estrada de jipes e burros do eito, defronte do engenho de Felipe Bezerra, cruzar-lhe-ia o percurso graúdo exemplar de porca impaciente, a receber no meio do espinhaço os pneus ligeiros do transporte, jogando no meio de larga poça de lama preta da moagem o lépido motoqueiro.

Esse encontro foi um Deus nos acuda! Naquele dia, desfizeram-se os planos de Quinco, pintado dos pés à cabeça da tiborna mais escura, que apenas ergueu a moto e voltou para casa, desfazendo o itinerário habitual da sua costumeira fidalguia de rever as pessoas da cidade naquela vez.

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Diógenes, o Cínico


Há desses personagens que determinam o jeito de a gente querer olhar o mundo e tirar algumas conclusões. Deles eu lembro Diógenes, andarilho irreverente que morava num barril pelas ruas de Atenas, na Grécia Antiga. Diógenes de Sinope, ou Diógenes, o Cínico. São diversas as anedotas trazidas até aqui por Diógenes Laércio, no livro Vidas e opiniões de filósofos eminentes.

Por acreditar que a virtude era melhor revelada na ação e não na teoria, sua vida consistiu duma campanha incansável para desbancar as instituições e valores sociais do que ele via como uma sociedade corrupta. Wikipédia

Dentre suas histórias mais famosas, cabe lembrar quando, certo dia, pronto a desfrutar de um prato de lentilhas, o filósofo Aristipo, ligado à corte e usufruindo das regalias dos poderosos, considerou: - Houvesse maior amizade entre você e o Rei e teria melhores refeições do que mero prato de lentilhas.

Ao que Diógenes apenas revidou: - Se tivesses aprendido a saborear com gosto um mero prato de lentilhas, de certeza não haverias de te sujeitar aos caprichos de Sua Majestade.

...

Diógenes detinha um escravo chamado Manes. Sem que pudesse contê-lo todo tempo, hora dessas e o cativo fugiu ganhando a liberdade. Qual não seria, porém, o espanto dos amigos quando o filósofo não esboço a mínima preocupação do ocorrido e de logo retrucou: - Uma vez que Manes pode viver sem Diógenes, o que impede que também eu possa viver sem Manes. Do jeito que ele ficou livre de mim, eu fico livre dele, pois.    

...

Sabe-se doutro momento quando, lá uma vez, sendo abordado pelo Rei Alexandre a se dizer seu admirador, que quis este saber do que ele estaria necessitando naquela ocasião. De dentro do barril onde se aquecia ao Sol, enfático de pronto retrucou:

- Nessa hora lhe peço, tão só, que saia da frente que quero aproveitar do calor da luz solar.


quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Paisagens humanas


Dentre os mais variados temas, persiste a vontade que mora ali no coração de todos, seres estes que são livres, libertos dos demais, porém habitantes de regiões quiçá ainda desconhecidas até deles mesmos. Assim, desfilam nas plataformas dos dias em todos os matizes pelas ruas da cidade. Veem, concordam, se olham acesos, vistas longas a outras paragens talvez bem distantes dali. Mil paraísos dispersos numa única folha de papel de sentimentos, ondas revoltas de um mar ser fim. Viajam soltos nas entranhas dos sentidos, aguardam (quem sabe?) o momento dalgum acontecimento fortuito ou doutras histórias que não essa, diferentes das que já carregam consigo nas estradas deste mundo. O que é realidade pura de que ninguém já obtenha a substituição definitiva, significa, pois, transportar as frações de tempo na superfície do desconhecido da pessoa que seja.

Contudo, enquanto aparentes espectros de si, neles impera o segredo de tudo quanto existe ou existirá sempre nalgum lugar. Porquanto meros sujeitos do Destino, detêm o senso do Absoluto escondido aonde nem descobriu ainda e nisso executam o procedimento da Salvação do desaparecimento. Contrastes, qual, de todos os sóis do Infinito, trazem consigo a luz dos firmamentos; isso no alvedrio das criaturas, preenchem as fichas das gerações e adormecem sob o mistério de quantos sonhos e interrogações...

Desse jeito, és o caleidoscópio das gentes em todos os quadrantes, civilizações, impérios. Livros que sobrevoam os séculos, revivem os caprichos da própria liberdade e dão de cara nos resultados das tantas vidas que sucedem. Humanas criaturas, heróis das aventuras errantes pelos painéis dos aeroportos, das filas dos supermercados, vendedores ambulantes, solitários pesquisadores das sombras que lhes observam das cavernas e dos desertos.

Na ânsia, por isso, de romper as crostas da evolução, aprendizes nesse universo daqui de dentro, encenamos os passos que nos abrirão as portas do desconhecido e ver-nos-emos face a face com a Eternidade, fragmentos de um Só e artesões da Consciência pura.

(Ilustração: https://www.projetodraft.com/verbete-draft-o-que-e-wisdom-of-the-crowd/).

terça-feira, 12 de novembro de 2024

O Açude Velho


Tudo na fazenda gira em torno dele. Principal reservatório do Tatu, a fazenda em que nasci, e que dispõe também do Açude Novo. O Açude Velho sempre marcou a vida naquele lugar, pela altura e extensão de sua parede, na qual transitaram comboieiros, viajantes e os primeiros automóveis da antiga estrada do Cariri a Fortaleza.

Nessa parede, em princípios do século XX, diante de chuva descomunal, dona Fideralina atravessaria madrugada inteira de angústia, a andar para cima e para baixo, em sua cumeada, de rosário nas mãos, a pedir que a cheia amainasse e mantivesse a barragem intacta, o que não aconteceria, pois antes de nascer o Sol seria essa a única vez em que a represa arrombaria, levando no eito toda safra de cana situada no brejo abaixo, prejuízo de um ano inteiro de trabalho.

Histórias outras transitam pela memória dos que viveram e vivem às margens daquelas águas, de vultos noturnos que desciam do beco do engenho e desapareciam no seu leito, sem deixar qualquer vestígio ou referência nas coisas materiais.

Nas três represas cobertas de capim de planta, no período de estio, e de aguapé e babugens, nas cheias, pululam marrecas, rachanãs, galinhas d’água, socós, num festival de sons, penas e cores, a torná-las parte dos mistérios profundos das águas insondáveis, avistadas quais espelho infinito do oitão da casa grande, lá no alto.

O banheiro limpo, na borda próxima da casa, ao qual meu avô descia ainda no lusco-fusco das madrugadas para a higiene matinal, serve de logradouro nas manhãs de domingo, alegria da meninada e ponto de encontro dos adultos em farra.

Nas águas do Açude Grande aprendi a nadar no estilo sem estilo dos caboclos, nos banhos coletivos, a jogar cangapé e me aventurar em travessias mais longas, a demonstrar coragem ou afrontar a sisudez dos mais velhos.

Há notícias de pessoas tragadas pelas águas, só encontradas no porão, lugar de maior profundidade, devido a vela acesa numa cumbuca, causando espanto às crianças que escutavam os relatos, sobretudo em noites estreladas, no alpendre da casa.

Certa ocasião, inícios da década de 60, levado por meu pai, presenciei uma pescaria em toda área do açude. As águas baixaram tanto, por conta de invernos deficientes, que marcaram data e trouxeram os habitantes da redondeza numa ação comum. Nunca vira tanta gente reunida quanto daquela vez, quase na lama, com água pelos joelhos; um formigueiro de pessoas, a fim de não perderem o peixe, no risco do total esvaziamento das águas.

Landuás eram os instrumentos mais usados, seguidos de tarrafas e galões, nas diferentes malhas. Ao peixe nenhuma chance se daria. Dentro de pouco tempo, as enfieiras, os sacos e outros recipientes esborrotaram dos exemplares de tamanho variado, curumatãs, trairas, piaus, pescadas, mandis, e até cágados e muçus; ali não existiam piranhas ou os atuais tucunarés, tilápias e tambaquis.

Em torno das águas do Açude Velho ainda hoje repousa a história da comunidade, que delas se alimenta, os poucos habitantes que ainda restam na fazenda, vida que nutre a vida que delas se nutrem há perto de três séculos, sem parar um único dia.

domingo, 10 de novembro de 2024

Palavras vivas


Tantas vezes a memória deseje conhecer a si mesma, nessas horas recorre às palavras, num afã de causar espanto aos menos avisados. Por isso, há infinidades de livros espalhadas no chão, desde sempre. No início em pedras, fiapos soltos de couros e sobras de vegetais envelhecidos; depois, nessa fome de continuar, vem a razão de quantas pelejas e inúmeras guerras siderais, desejo de muitos em contar do instinto da procura e das dores da ausência.

Talvez dadas essas justificativas, quer-se a todo custo achar um espaço à compreensão, enquanto, na verdade, são esforços desmedidos a conter o silêncio, este que jamais deixou de controlar as horas e dominar os pensamentos. Mas ainda que seja assim, lavas vulcânicas de sentimentos seguem a trilha do passado e invade os olhos dos humanos. Palavras, palavras mil, durante essa fome do desejo, susto de viver dos que estão feitos vultos assombrados na procura da Luz.

Conquanto meras letras mortas do Destino, essa multidão entontecida às noites sai no encontro de rever saudades agressivas e adormecem sobre o palco das lamúrias, querendo, qual seja, ao menos sustentar o sonho de sobreviver a qualquer custo. Bem nesses instantes, todos valores preenchem a barca do Infinito. São espécie de desencontros em face do inesperado, cientes, até, do que lhes possa vir da aventura incessante que transportam no peito, senhores de iguais e sórdidas penalidades do que seja desconhecer as razões de estar aqui bum só instante.

Nessas ocasiões de amargurar a solidão da própria alma, nesses momentos de susto e lucidez inevitável, elas, as palavras, gritam no coração a pedir paz, humildade, compreensão. E avançam caladas pela floresta escura do desconhecido, a rasgar derradeiros motivos de continuar e vencer o distanciamento vindo nas mesmas mãos que os sustentam nas dobras do mistério. Daí o fulgor que ilumina céus e terras, pelas folhas esquecidas de todos os livros abandonados nas ilhas do esquecimento. Nisto, regressam gerações inteiras, ao som das sinfonias esplendidas que alimentam e acalmam as angústias de existir.

sábado, 9 de novembro de 2024

Cores mais fortes


Surpreendentes e livres, feitas chapéus voando arrancados pelo vento das madrugadas, palavras escapolem no ar pedidos fervorosos de socorro, à busca súbita de outras cabeças onde repousem noutros pensamentos clandestinos. Aliás, pensamentos talvez digam pouco para expressar o ímpeto do coração nessa indefinição entre as trilhas do desejo e a matéria elaborada no forno da cabeça, para chegar à boca mecânica, indiferente. Isso que seja mais sentimento, invés de pensamento.  

Daí, na intenção original de quer falar, espécie de exanguidade em lua de mel, quando, por mais se insista em conter o desejo permanece, o coração andava cauteloso, sem querer abrir asas de liberdade, após experimentar emoções contraditórias de velhos desencontros. A presença dela, no entanto, encheu de oxigênio puro o peito, as fibras dos pulmões atrofiados na limitação oficial voltaram a folear com gosto. Compactados nos fios de pedra dos cânones, elas apenas seguiam sonhos em doses permitidas nas rodas oficias, beijos de mão e leves afagos nos braços descobertos da etiqueta. Nada que ultrapassasse a censura da impressão alheia.

Nisso, ela invade faceira o salão de baile das noites dimensionais e rasga as fibras cor de jambo dos tecidos cardíacos, rompendo no gesto o império bizantino do medo casto dos regimes ditatoriais. A primeira imagem que ressurge depois, no minadouro das ideias, seria, qual movimento de penetração solar nas fímbrias virginais do horizonte; albores das lindas manhãs de luz; intensas paixões desarvoradas. Laivos vermelhos, com riscas laranja e pomos de amarelo queimado, a brancos contornos precisos.

Ela, um dia de manhã, agora beleza sem precedente dos gestos inevitáveis da alvorada, havendo guerras, convenções, incertezas humanas; ela, explosão de suavidade gravada profunda nas paredes internas do infinito. Divina gazela no jardim do Paraíso, anda macio no meio de cactos, boninas, luares, marmeleiros, zumbido solto de linguagem cifrada, cumplicidade sideral das abelhas, riscos e desenhos magistrais de perfumadas flores, nas vestes esvoaçantes em corpo escultural.

Existem, sim, os refolhos do mistério, que abrem suas portas caprichosamente. Espécie de ser que desperta envolvido no líquido dos partos recentes, mexe o corpo no exercício da existência e acostuma em si o primor das possibilidades. Distende a silhueta enigmática num gesto harmonioso de incertos passos e ombros se erguem à certeza.

O coração, por sua vez, amacia o impacto dos primeiros raios sobre a superfície de cores vivas e deixa encrespar suas águas serenas, aquecendo a pele na lúcida imagem do céu que contorna de ramagens verdes um nascer bem devagar, e desperta feliz o dia de sol intenso.

sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Livros são espelhos


Ao ler, lemos a nós mesmos através da projeção da visão e identificação, nas páginas escritas, projeção dos nossos conteúdos pessoais, pensamentos, cultura, conhecimento recolhido no decorrer do tempo. Vem daí a importância inigualável da leitura como fonte reveladora do Ser, quando revemos o que dispomos acumulado em nosso interior, recordando coisas aprendidas, movimentando reservas em nós depositadas nas sombras do passado que existirá sempre na mágica indestrutível da consciência individual. Essa consciência, que junta de si nos outros, forma bloco único e eterno das coisas a se revolverem no ato de ler, as quais são denominadas de inconsciente coletivo, nada além da formulação universal dessa Luz universal da Natureza maior.

É uma moeda que revela seus dois lados em apenas um só lado único, pois. Inexistirá divisão nesse padrão de todas as manifestações em consonância, representadas em face única e particular, o singular do que antes se supunha uma pluralidade infinita e múltipla. Milhares de faces de todo único individual, indivisível. Tudo e todos em um só e único, mesma face da moeda solitária a percorrer o cosmos em viagem sideral através das inúmeras consciências do único formato, entre si interligado por fibras internas da primeira essência.
Ler, portanto, percorrer a face de dentro do conhecimento em elaboração no lado íntimo das individualidades, atualiza essências anteriores da mesma face em novas revelações, constatação original da vez primeira em retorno às vezes outras que se repetem no ser individual-plural, no bloco indivisível de cada ser. Ato de procurar e encontrar a um só tempo, qual ente que desloca seu foco de consciência através da mesma rede imperecível que nasce da fonte perene do ser-conhecer em ação permanente.
Quando lemos, por isso lemos a nós próprios. Atualizamos causas primeiras e consequências posteriores da elaboração de pensamentos e discernimentos, configurando, outra vez primeira, as reações secundárias do que já foram ações primárias, nas letras, palavras e sentidos das novas edições do ato único de compreender que confronta a nós próprios.
Nesse processo da comunicação, as consciências se refazem muitas infinitas vezes, pelos seus próprios atos, no mistério persistente do ser em constante vir-a-ser, resistência, continuidade suspeitada de sobrevivência dos valores da unicidade nas coisas que se sucedem pela essência primeira, na continuidade de tudo em um foco perene, manifestado nas horas diversas e em imagens fragmentadas de futuro aparente, ilusões de particularidades que resultam das imagens únicas em movimento, porém indivisíveis, da mesma e só uma consciência do momento presente em cada lugar do imenso si mesmo todo tempo, e em cada um dos indivíduos atores, através dos quais se manifesta, portanto.
Nisto desvanece o princípio arcaico da multidão de subjetividades e se desvela o conceito pleno da indivisibilidade primeira e eterna do Uno, ser causa cáusica de tudo, Ser essencial, motor dos primeiros postulados, de quem derivaram todas as pretensões anteriores do dois manifestado e também existente, face dupla do Ser criador vivendo em nós, no entanto sem divisão.