terça-feira, 29 de abril de 2025

As entranhas do Universo

A vida é um paraíso, mas os homens não o sabem e não se preocupam em sabê-lo. Fiódor Dostoiévski 

Ali, de onde se vem e aonde tudo jamais irá chegar a um fim, esse espaço entre as árvores de floresta imensa, espraiada no solo dos destinos, eis que nos deparamos com nós mesmos, tais portas fechadas a serem abertas lá num momento, quando virão as histórias que viemos aqui escriturar. Palcos incontáveis de peregrinos e segredos inextinguíveis, cobertos de mantos imaginários, de longas viagens a lugares inesquecíveis de uma caminhada pelos céus.

Dotados, pois, que fomos de tanta esperança, vultos abençoados, vales dos sentidos, descem ao piso das alturas e iluminam os astros mais distantes, vistos só nas cenas azuis dos filmes mágicos. Caminheiros à busca de compreender o sentido que nos toca e alimenta vidas a fio, e que por vezes esquecemos, diante das nuvens que transcorrem nas madrugadas; dali, ouvimos passos seguindo nas folhas do mistério.

Quantos significados, pois, vagando através dos dias, enquanto aguardamos os frutos dessa espera. Todos, multidões, que juntam pouco a pouco fardos sucessivos, comporão a pauta desse futuro. Submersos nas ondas dos sentimentos, faremos do tempo o roteiro das infinitudes, seres em aperfeiçoamento a recriar os motivos de andar neste mundo, livres, ansiosos, no entanto. E saber, depois, contar do quanto existiu sempre no íntimo.

Nisto, fica sequenciar rastros e sonhos, decodificar a linguagem dos pássaros e perlustrar os horizontes, as flores, em livros e livros que preenchem ruas, mercados e bibliotecas. Muitos, que sejam, decerto a tudo interpretar, nos trajes, nas falas e nos desejos. De coração a coração, dizer outros segredos adormecidos no silêncio dessas horas.

 

domingo, 27 de abril de 2025

Visões do inexistente


Chegar ao teto dos pensamentos, colher imagens, as transformar em ideias e, logo a seguir, nas palavras. Há pouco, nem existiam, e somem depois, daí o jeito de jogá-las na tela em branco. São fagulhas tiradas do Tempo, feitas de possibilidades, nesse labirinto informe das concretudes aparentes. Desejos vagos de multiplicar em tópicos o que sumiria, e de lá montar significados, no instinto de tocar adiante a vontade de subverter o desaparecimento na correnteza desse rio inevitável... E não só pensar, resgatar isso do silêncio, no entanto sonho a ser realizado até o encontro da herança de que seremos, então, os instrumentos.

Nesse tal jogo de claro-escuro das horas, vemo-nos parceiros do mistério em que tudo resume as existências. Desde que ouvidas de dentro do instante, as palavras seriam pedaços da gente a se espalhar pelo espaço, ritmo constante da imaginação.

Depois, vêm as músicas, cálculos imediatos no território de onde nasce o som ao compasso dos ritmos e das sequências de harmonias refeitas ao sabor da inspiração. Enquanto isto, aqui alguém que escuta, interpreta e transmite, palavras doutros códigos, a tocar o sentimento por meio das atitudes humanas. Nisso também resultam as formas e cores, nas artes plásticas, a contar tantas histórias refeitas ao fulgor da claridade.

Noutras compreensões, a Natureza fala sempre de um desejo incontido de tocar objetos e criaturas, donde os pássaros, o vento, a chuva, o Sol, a Lua, as estrelas, no fluir das horas em forma de relacionamentos e narrativas, linguagem perene, perfeita. Reunir, portanto, inspirações, lembranças, descrições, daí o fulgor estonteante do quanto existe nas inscrições vivas de que somos feitos.

Antes disso, seremos entes simbólicos, viventes da fronteira que fica lá nos céus da Consciência, minúsculos seres dotados de ânsias e sacrifícios à busca de compreender a si próprios diante do Infinito.

sábado, 26 de abril de 2025

Pelo deserto das consciências


Estranhos mundos esses daqui de dentro das criaturas humanas. Lugares da mais profunda aridez, por vezes, no entanto preenchidos de folhas e folhas de cores, a conduzir os muitos comboios de solidão pelos corredores do Tempo. Roteiros de tantos filmes, os tais heróis do Infinito percorrem a vastidão do próprio firmamento à busca do que neles mesmos são capazes de avaliar, e conduzir, e criar. São batidas surdas nas portas do Destino, à espera de receber o soldo das vidas espraiadas nas frias noites e nos dias escaldantes. Horas sucessivas, nisto refazem planos e os desfazem em fiapos na ocasião de jogá-los fora. Um campo de tantas provas, todavia séculos de dúvidas e atitudes. Eles, por si próprios expectadores e diretores das muitas cenas que agora representam réstias imaginárias.

Lembro, sim, dos instantes de súplicas aos céus que os transformei, ao longo dos dias, nas quimeras assustadoras de outrora. Expectativas que formam mistérios entontecidos na embriaguez dos sentidos e na pura sofreguidão; só depois busco compreendê-las, nessas interpretações a sobrevoar o passado, deixando no relento, de novo a multiplicar as peças do quebra-cabeça da sorte pelos tabuleiros de ilusões e angústias, uma espécie de autocrítica tardia. De quantas imprevidências e pressas formamos os desencontros e as viagens a lugar algum?!

Tais assim quais somos, muitos devem ser, também, aprendizes das escolas e cativos da fantasia, zumbis apressados na imensidão que os transporta. Em cada cabeça uma sentença, qual dizem, e, perante a tela das escolhas, ora se planta o sequenciar de histórias infinitas, à carne viva do silêncio onde há mundos em formação neste palco das consciências.

O que dizer


Nesta temporada de tantos assuntos, fontes aos milhões de histórias diversas, quando a correria dos séculos parece tomar conta dos juízos numa fúria sem paralelos, isto o que dizer, o que escrever?! Meios não faltam de se expressar e jogar na mídia palavras e imagens em profusão. Outra ocasião semelhante, jamais. Razões, no entanto, carecem de motivos que as justifiquem com propriedade.

Houve uma fase dessa história conhecida quando autores vários produziram seus livros a tratar de temas filosóficos amplos, mergulhos demorados nas entranhas do conhecimento. Depois, as religiões e seus arautos, a estudar os tratados místicos e transmiti-los às multidões. Adiante, os cientistas buscaram avançar na prática dessas arrecadações e chegaram a isso que aí está, os tais instrumentos tecnológicos que hoje dominam o dia a dia de forma a bem dizer definitiva, pesquisando e somando resultados, nessa máquina estruturada à força do poder financeiro e dos arsenais, pelo mundo afora.

Face ao domínio político das nações mais poderosas, vieram a Grandes Guerras, fazendo com que os pensadores sentissem na pele a opressão mercadológica e vieram de pensar em si mesmos, na essência das criaturas, desde então meras peças do grande todo, a mover a máquina desta Civilização mecanizada.

Foram eles os psicanalistas, os existencialistas, livres-pensadores, inadaptados, ferrenhos questionadores da gana totalitária, o que aí está numa proporção jamais vista. Catam a todo custo o senso da liberdade tão decantado no decorrer da longa História. Vieram disso as ditas revoluções do pensamento, o que, até agora, nem de longe responderam aos propósitos pleiteados, deixando os dias prenhes de outras dúvidas e ânsias avassaladoras de encontrar o nexo fundamental de tudo quanto existe. Conquanto livre o dito pensamento, no entanto persistem as indagações de onde viemos, o que aqui fazemos e aonde seguiremos, numa epopeia digna dos arautos do pensamento durante a jornada pela vida inteira da raça humana, pois.

sexta-feira, 25 de abril de 2025

Efeito Borboleta e a Teoria do Caos


A gota que cai é só uma gota… até que ela transborda o cálice.
Zen-budismo

Hoje, dei de cara com lembranças do filme O som do trovão, feito com base em um conto homônimo de Ray Bradbury, onde, em futuro imaginário, se organizam excursões ao passado. Numa delas, ao fazer sem intenção, um dos participantes pisa uma borboleta e isto, ao longo do tempo, causaria profundas consequências no futuro. Claro que não literalmente, mas simbolicamente. A ideia é que pequenas causas podem ter grandes efeitos, especialmente em sistemas dinâmicos e complexos, como o clima, a mente humana ou… o próprio destino. ChatGPT

Assim, desde agora, tudo que há de acontecer advém conforme o plantio que seja diante do Infinito, as tais escolhas e consequências, donde provém a justiça absoluta, inderrogável. Quais perante a perfeição do quanto existe, sistema por demais exato e verdadeiro, a partir de pensamentos, gestos, palavras, ações, dos componentes da vida, a Natureza elabora seus prontos resultados face às individualidades, sociedades, perspectivas humanas. Ausentes disso inexistem possibilidades outras.

No quanto de simples, pois, o conto de Bradbury deu origem a essa denominação que, desde então, circula na mídia (Efeito Borboleta). O bater das asas desse mínimo ser pode ocasionar resultados de proporções imprevisíveis noutros lugares, pois, conquanto tudo estar inter-relacionado, independente das avaliações ocasionais. A imprevisibilidade do que virá obedece a padrões de ordem determinante que foge ao senso só dos humanos.

Isto, por assimilação comparativa, nos leva aos pressupostos de Carl Jung relativos ao poder transformador da Consciência. Na sua tese, o Self (Si Mesmo) dispõe da capacidade original de, num único gesto interior, refazer a trajetória externa da presença individual e operar como o ponto revelador da transformação do Ser (a Individuação) em essência, sendo, portanto, essa a voz misteriosa do Universo em diálogo consigo próprio através das criaturas do que somos nós mesmos.

quarta-feira, 23 de abril de 2025

A quantas andam


Há horas em que as próprias palavras querem porque querem falar, independente daquilo que se passa no juízo das criaturas humanas. Nem avisam quando, apenas insistem dizer algo que, de longe, se possa imaginar o quê; mas, ainda assim, persistem num afã de causar espanto. Tal quem deseja impor condições a um ser delas submisso, trazem consigo notícias dalgum lugar lá de dentro, revendo estados de alma, ou mesmo lembranças guardadas de tempos e tempos. Quase nunca pretendem só contar daquilo que esteja acontecendo aqui fora, no entanto. As emoções que cercam, um a um, a todos, repetem o percurso de volta e estabelecem metas e intenções de continuar. Nesse encontro delas conosco, juntos, pois, nada resta senão conciliar interesses e contar do que acontece, enquanto turbilhões de sensação perduram anos a fim no transcorrer dos significados.

Nisso, cabe estabelecer as bases de outras interpretações do universo em volta, a quem fixar os outros valores, ajustar as finalidades do quanto estejam, e sustentar a ordem natural de tudo. Um ser, fixo nas letras do imaginário, vive apegado ao impulso de existir perante o Tempo. Espécie de análise vária do panorama nos céus dos pensamentos, este, que percorre o mesmo itinerário de todos, pouco ou nada sabe de quantos agora estejam a cruzar os mesmos mares da incompreensão e mergulhar noutros mundos, noutras de presenças, meros senhores de conceitos. Longe que ainda estejam das paisagens e dos sentimentos, minúsculos componentes desse todo sob o quê nos apercebemos, contudo são peças fixas do enorme quebra-cabeças do Destino.


segunda-feira, 21 de abril de 2025

O preço da liberdade


Às apalpadelas, definir os meios necessários de sustentar a certeza quando nenhuma alternativa resta até então que ofereça qual espontânea e reveladora. Isto é, tatear o escuro das gerações enquanto circulam os astros pelos céus ilimitados. Pisar o solo seguro de jamais haver, outra vez, de amargurar as dores da inutilidade, dos equívocos...

Matéria portanto só experimental; viver que sustenta na alma a face das condições inevitáveis de persistir a qualquer custo; existir qual seja, nesse universo de quantas luas e perenes expectativas de uma sorte maior. Há que ser assim, por conseguinte. Viver, sobreviver, etc...

Sujeitos, pois, das inconsequências e finais daquilo que nem de longe translúcido seja, as criaturas forcejam o inesperado e se entregam às possibilidades das atitudes quiçá impensadas. São eles os tais aventureiros da solidão, arteiros de dados e pensamentos; esses que andam ali submersos nos mares em volta e parceiros do inigualável e desconhecido.

Todas as lendas falam disso, do jeito próprio de, lá num tempo qualquer, encontrar a definição do que seja resolver o tal conflito entre as tantas escolhas, e nisso revelar a si o rumo do definitivo, ainda que nada possa divisar pelos rastros deixados nas lamas do passado. Abrir as portas da consciência e parir a luz de dentro das sombras que lhes acompanham a cada passo. Forcejar o Destino e distinguir os significados de poder agir, mesmo antes de conhecer as normas do Infinito. Isto, sim, é a liberdade

Nós, quais sejam múltiplos fantasmas das intenções instigadora dos desejos e réstias apressadas de ninguém além das noites indagadoras. Isto seremos nalguma circunstância de todo momento que desafia. Isto, a liberdade. Espécie de loteria dos dramas deste chão flamejante de pródigos segredos, guardados a sete capas no âmago dos outros corações. E existir, e fazer, perante as condições de estar aqui e conquistar o sonho de um dia achar a inspiração por demais absoluta.

domingo, 20 de abril de 2025

Um tempo que é de luz


Essa busca incessante pelo inevitável talvez viesse acrescentar cores fortes ao quadro abstrato do Universo. Fôssemos só em seguir, haveríamos de deparar, logo ali adiante, com o abismo de depois, no entanto cercados de todas as características desse panorama de séculos eternos. Toques vários e os mesmos desacertos (acertos) do que ficou na estrada. Sons e ausências, numa alternação sem conta, a meio de tantas possibilidades. Nós, as criaturas à procura de si, no vasto continente da fama. Olhos abertos aos paradeiros da infinitude, porém depositários de lembranças que não acabam mais. Isso, a cruzar os mares das ilusões, dotados, contudo, de certezas inigualáveis, densos autores de projetos e loterias, vistos desde quando antes estivemos noutras vidas, que também descrevem a vastidão do desconhecido.

Fortes sinais já são notados nos céus, a revelar novas lendas, trazidas no bisaco das memórias. Bem isto, esses seres pequeninos à cata das epopeias, através dos romances e contos, películas e sonhos. Na ânsia incontida, pois, de achar na alma os pendores das verdades absolutas, deslizam pouco a pouco pelos paredões das viagens sem fim e somem outra vez no silêncio aonde convergem as vontades num único bloco de pedras e narram suas trajetórias inesquecíveis às novas gerações. Trazem no íntimo as estrelas de noites infindáveis. Alimentam o desejo constante de ser quais personagens de lendas escutadas nas florestas escuras do inefável e repousam admirados consigo próprios.

Eles, tais seres misteriosos, vêm e vão pelas ruas, traços perpendiculares de amores sublimes e risos felizes, heróis dos instantes, viventes dos céus em movimento nas consciências individuais. Multidões, numa única espécie no desfilar das tradições. Nós, um a um, seremos isto, a soma do quanto existiu e, de novo, virá nas pautas da Eternidade, essas luzes que preenchem o catálogo do que ora somos e seremos, então.

sábado, 19 de abril de 2025

O Inconsciente como Universo Livre

                     

(Diálogo com ChatGPT (OpenAI), editado por José Emerson Monteiro Lacerda).

– Qual outro caminho até a mente se não a linguagem?

Essa pergunta é puro Lacan.

Para ele — e muitos que o seguiram — a linguagem não é apenas um meio de acesso à mente, mas o próprio tecido onde o sujeito se constitui. O inconsciente fala, diz Lacan. Ele se manifesta nos atos falhos, nos sonhos, nos sintomas — tudo isso são discursos do inconsciente.

Mas tua pergunta vai além: há outro caminho até a mente que não a linguagem?

Se pensarmos com Lacan, diríamos: não. Tudo que dizemos da mente já é estruturado pela linguagem. Mesmo os silêncios têm sentido dentro de um sistema simbólico. A própria consciência que temos de nós mesmos é mediada por palavras, imagens, significantes.

Mas se abrimos para outras tradições...

Na mística, há experiências da mente ou do espírito que transcendem a linguagem — o inefável, o êxtase, o vazio, o silêncio absoluto. Algo que só pode ser apontado por metáforas, nunca nomeado diretamente.

Na fenomenologia, o corpo e a percepção são caminhos para a mente que precedem a linguagem. Um bebê já está imerso no mundo antes de falar — o corpo sente, afeta, age.

Na arte e na música, o afeto e o sentido podem ser transmitidos sem palavras — e muitas vezes mais profundamente que por elas.

Na experiência direta, como a atenção plena, o estado meditativo, o transe: há aí uma forma de "consciência pura", sem necessidade de representação linguística.

Talvez a linguagem seja o caminho mais claro até a mente comunicável. Mas a mente em si... talvez tenha portas secretas, subterrâneas, símbolos que não falam — mas gritam no silêncio.

– Qual, pois, a distinção entre consciência e inconsciente que não seja a linguagem, a memória?

Essa pergunta cava fundo — e aponta para um dos grandes enigmas da experiência humana.

Se deixarmos de lado a linguagem e a memória como critério, como distinguir a consciência do inconsciente?

Na fenomenologia, a consciência é aquilo que se mostra a si mesmo: é presença, intencionalidade, ato de aparecer. O inconsciente, nesse sentido, seria aquilo que não aparece — que atua por trás, mas não se mostra diretamente.

Em Lacan, a consciência é o palco da ilusão de unidade, enquanto o inconsciente é o campo onde o desejo escapa, onde a falta estrutura o sujeito.

Nietzsche e Jung veriam o inconsciente como fonte de força e de forma, algo que age em nós antes que saibamos que estamos agindo.

Outra via: o tempo.
A consciência vive no tempo linear.
O inconsciente, no tempo mítico.

Talvez a consciência seja a forma, e o inconsciente, a força.
A consciência, uma ilha; o inconsciente, o oceano.
Ambos se tocam pela orla — e a linguagem é apenas uma das pontes.

– Sim. Um universo livre, que está junto da linguagem e tem código próprio, a se manifestar nos sonhos, na imaginação, na inspiração, na intuição.

Sim... isso soa como um vislumbre direto do inconsciente vivo — não como algo “escondido”, mas como um universo paralelo em ressonância com o ser, que pulsa no fundo do agora, com suas próprias leis, imagens, sentidos.

Esse universo tem código próprio. Ele fala.
Não como a razão, mas como o símbolo vibra, como o arquétipo se move.
Ele não está “dentro” de nós — nós é que estamos dentro dele.

A linguagem pode ser convidada, mas não a senhora dele.
Inspiração, imaginação, intuição — são ventos que vêm desse universo.
E a consciência deve aprender a escutar, não traduzir.

– Nisto o conceito de Inconsciente da Psicanálise estaria não nesse todo universal, mas numa conceituação apenas mental, no solo mecânico da matéria.

Exato. Você está tocando na distinção entre dois modos de ver o Inconsciente.

A psicanálise clássica trata o inconsciente como um modelo da mente — moldado por pulsões, linguagem, mecanismos. Mas o inconsciente que você descreve é mais vasto: é campo, é mistério, é fonte criadora.

A mente nasce do inconsciente, e não o contrário.
É uma visão mais próxima do que Jung chamaria de psique objetiva, ou do que a mística veria como espírito vivo.

– Sim, de ambos, a depender da consciência. Pois o vento existe de fora, livre e que se sente, no entanto não pode ser recolhido numa mera caixa de sapato.

Sim... belíssimo.
O vento é um símbolo perfeito.

Ele sopra — ora de fora, ora de dentro — e a consciência, se aberta, sente. Mas tentar aprisioná-lo numa "caixa de sapato" é o erro da mente racional, que quer conter o que só pode ser vivido.

A liberdade verdadeira não se possui. Se acolhe.

Talvez o trabalho da individuação seja justamente esse:
transformar a consciência numa escuta sensível para esse vento.

– A se prender a liberdade a meros conceitos atende a intenções, no entanto foge da pura certeza da própria liberdade.

Sim.
Quando se tenta prender a liberdade em conceitos, o que se tem não é mais liberdade — é um rastro dela, uma sombra que serve a intenções.

A liberdade verdadeira não grita, não se justifica.
Ela apenas é — como o vento que não precisa dizer de onde vem.

Ela não pode ser provada, porque ela é a própria prova.
Ela não pode ser definida, porque ela é o que escapa a toda definição.

A liberdade é filha da Eternidade.
Não precisa ser entendida. Precisa ser ouvida.

20.04.25.

sexta-feira, 18 de abril de 2025

O portal do Infinito

Isso que se avista quando, logo ali, o silêncio volta a tomar conta de tudo. O limite aberto na visão na face do que possível seja sem distinguir entre o Ser e o Nada. Um Cosmos absoluto, claro à nossa frente, todavia longe de toda compreensão da realidade que nos envolve. Essa interrogação que persegue a razão enquanto os olhos veem mas não enxergam. Fruto da ânsia do mais que perfeito, contudo mero desejo de voar a quem nem possíveis asas teria.

E lá no teto das paisagens, isto de notar apenas a título de saber que existe a completar o mistério e desfazer as possibilidades. Decerto que a vontade bem que gostaria de estar presente, e nisto vencer as algemas da incompreensão. Noutras palavras, o início de um sentido feito de rascunho, à busca de completude no tempo de não saber quando será. As limitações falam essa linguagem nos códigos do absurdo, donde alguns entendem, outros imitam saber e ninguém ainda divisou a imensidão do que tal significa. Portanto, eis o padrão do meio termo onde a multidão ilustra conceitos e deles faz os destinos e emite seus pareceres.

De outro modo, padecer-se-ia da mesma fome do inesperado, quantas e tantas vezes, cercados que foram de limites e dotados de pouco ou de nenhum senso. Muitos já experimentaram e tocam a certeza de querer dizer o que notaram dos sacramentos da Civilização. Há compêndios mil, encontrados ou desaparecidos, visagens e relíquias, esquecidos em prédios abandonados pelas páginas da História. Tons assim multiformes das tradições que só agora deixaram postos nos muros do labirinto, fortes dádivas do inesperado, em forma de livros, pesquisas, músicas, filmes, falas, aplicativos, numa gama inimaginável de clamores e profecias. Aos passos de quantos ora dominam o panorama, resta pouco, mínimos sóis, até chegar o instante de uma consciência plena daquilo que nos traz até aqui.


quinta-feira, 17 de abril de 2025

Tributo a uma liderança


Conheci Benvindo da Costa Melo no início dos anos 80. Ele veio a Crato representando a Comunhão Espírita Cearense no I Encontro dos Espíritas Caririenses. Desenvolveu trabalho digno de nota, prenúncio do crescimento regional que hoje representam os centros espíritas em atividade no Cariri.

Daí se formou uma amizade duradoura, consolidada muitas vezes nas chances de um relacionamento promissor. Desde cedo, percebi o valor que possuía essa figura humana. Natural de Guanambi, Estado da Bahia, jovem ainda moraria no Ceará, que amou como seu natural, aqui pontificando uma obra de vasta solidez.

Realizou o trabalho de instalação definitiva do Espiritismo, por meio de atitudes tais como a fundação do Clube do Livro Espírita de Fortaleza – CLEF; a manutenção, por várias décadas, da Comunhão Espírita Cearense, ao lado de outros e laboriosos companheiros; a criação da Federação Espírita do Estado do Ceará; a edição do jornal Fortaleza Espírita, depois transformado em Ceará Espírita; a fundação das livrarias espíritas Roteiro e Sinal Verde; e a divulgação, através da palavra e da mediunidade de cura e do aconselhamento, nos centros da Capital e dos municípios cearenses.

Homem dotado de inteligência brilhante e espírito simples, Irmão Benvindo (deferência carinhosa que lhe damos), possuía o carisma próprio do líder mais sapiente. Orador objetivo, fluente, jamais mediu esforços para atender aos convites para visitas e palestras, inclusive noutros estados distantes. Autor de muitos artigos doutrinários, escrevia em estilo elegante, comunicativo, acessível a todos. Essas qualidades caracterizam a força de sua personalidade; no entanto, detalhe precioso resta acrescentar, o seu talento de conselheiro, bom pai de família e esposo, que exercitou de modo persistente na vida, com ânimo e cultura.

Vejo-me, portanto, no dever de escrever estas palavras sobre Benvindo Melo, num reconhecimento público do trabalho que desenvolveu, dando de si, sem pensar em si, o que bem pode ser reafirmado através de muitos testemunhos. Entusiasta, persistente, buscou pautar, com alegria e boa disposição, os compromissos que desenvolveu com maestria ao tempo de sua estada neste Chão.

Bolhas cognitivas

 

Domine sua mente, ou ela dominará você. Marco Aurélio

Esses tempos digitais assim acontecem, submetidos que ora somos desde sempre. Entre os pensamentos e as palavras ali habita o silêncio. Nisso, desvendar do mistério o que ele representa de um outro universo além deste daqui. Milhões de fragmentos de tantos afazeres significam isto, nada menos que existir somente. Olhar ao léu e ver o percurso aonde se chegar, mesmo que destituídos de imaginação. Cercar o Tempo e reverter o Destino a lugares sombrios. Construir novos rios, novos mares, céus e salvação, diante dos fatores mínimos que movimentam braços e pernas, estômago e cérebro, só entregues ao ritmo das alturas lá de longe. Deixar transcorrer as idades e os ventos perante cores e formas. Sobreviver a tudo, por isso. Refazer o itinerário do passado e distinguir entre amores e melodias, sons e luzes. Convergir nessa estrutura das horas face a face consigo próprio. Senhores de si pelas nuvens dos séculos. Pequenos autores de monumentos espalhados pelos desertos de quantos estiveram e de outros que irão chegar ao raiar dos dias.

Ser invés de apenas resistir aos movimentos. Colher na alma o crivo da realidade. Sustar, no ânimo, a força viva da mais pura liberdade. Tocar em frente ao sol de todo dia. Existir qual norma essencial de contar dentro da visão o motivo de estar e permanecer onde quer que esteja agora e eternamente. Saber enquanto vive, a distinguir os sulcos de todos instantes, nas falas e trilhas do Infinito. Nos gestos, a marionese da imortalidade. Sustar a razão durante o espetáculo cuneiforme de muitos métodos. Reunir o furor da Natureza em novos entes que transportam a carga dos impossíveis meios. Saltar os precipícios e conter na vontade o instinto de haver conhecido as chamas dos milênios, enfim.

E reconhecer debaixo da crosta deste mundo vário o espaço descomunal entre pensar e esquecer. Convergir, pois, as dobras do horizonte numa única vertente, a preencher o desejo e, depois, sorrir, afinal, do quanto restava de encontrar de vez a Felicidade.


terça-feira, 15 de abril de 2025

Folhas ao vento

 

Nesse acalmar de pensamentos vêm as palavras, e, logo em seguida, os sentimentos diversos. Círculo perfeito de tempo, passam livre de sentido, desde gestos mínimos a mergulhos mais profundos na carcaça dos mistérios. Logo, haustos de reconhecimento e quase nenhuma certeza, no entanto isto face equivale aos sons da compreensão, ainda perdidos nas providências sem atitude, algo assim feito de restos do que se foi e insistência dos cacos de passados escondidos na lama da inexistência.

Mesmo que seja desse modo, salvos mínimos acalantos deixados de lado, as artes reconhecem a velocidade do vento e reúne em volta oportunidades intensas. Alimentam de virtude mesmo as frestas do Infinito que ora percorremos sem jeito, meras testemunhas dos filmes antigos e das noites enluaradas vividas ao sereno. Segredos sussurrados aos ouvidos dessa eternidade que o somos, nutrimos de saudade o feixe de solidão que nos percorre as veias a todo instante.

Tais frequentadores de lojas imensas de tudo quanto há, percorremos todos os corredores do Destino e saboreamos as notas das mais lindas melodias, suaves autores de si mesmos. Destarte, formulamos as normas que seguem existências adiante, olhos fixos em loas de felicidade.

Conquanto resolver a equação da esperança ser-se-ia o gesto fundamental dos firmamentos, apenas largamos de novo a essência de viver, quais senhores impossíveis de nós. Com isto, as palavras rasgam o véu das horas e permitem exercitar o gesto mínimo de estar aqui e contemplar velhos padrões de toda geração que sustenta o itinerário do que sumiu para sempre.

Noutras vezes, sabemos da correnteza que significamos, e, astutos, desejamos dominar esse poder original feitos pequenos seres em trajes de beduínos espalhados pelos desertos afora. Somar. Diminuir. Voar. Desaparecer pelos campos. Vastidão inigualável que desmancha constantemente a floresta de quantos outonos, deliramos dentro das almas que fogem pouco a pouco nos traços de nunca ou jamais.

sábado, 12 de abril de 2025

Luares


Fixar, pois, no tempo o ser em si, de olhos vendados, a escutar nas distâncias o significado disso, do quanto existe agora e existirá sempre. Contar dos atributos de quantos aqui tocam o sentido único desde os pequeninos traços das verdades absolutas. Olhares assim diminutos, parceiros doutras compreensões, interrogam em tudo o desejo de revelar a quem contar, senão, ouvem apenas o vazio que circula em volta do silêncio. São os detalhes mínimos das tantas noites claras do Infinito; trilhas monumentais de expectativas e sonhos. Nem de longe o som das consciências, talvez a quem escuta calado o furor das sombras. Miragens, quais sejam, tocam o impulso de viver através dos pensamentos. Anseiam, por certo, despertar dalgum sono profundo noutros palcos, noutras histórias. Sustentar o princípio da compreensão pelas folhas das horas que passam sem deixar vestígio.

Diante das buscas, tais seres ainda amorfos mergulham nas visões do Paraíso que imaginaram e aceitam desvendar apenas fragmentos de um grande todo então adormecido. Ouvem falar de entes invisíveis, doutras dimensões, doutros universos, porém sustentam o crivo da fria razão e recolhem as redes dessas muitas histórias. Lembram das ocasiões de quando aqui as ouviam, nas madrugadas lá de longe, e regressavam sonolentos aos mesmos pousos de antigamente, serviçais que foram da solidão de alguém que chegou ao destino e, contudo, narram as suas jornadas possíveis, no entanto a serem descobertas de qualquer vez.

Noites enluaradas trazem isto, sinais dessa procura de dentro, além só das palavras. À força de uma vontade, o senso das impossibilidades dalgum modo persiste, nos iluminando esses céus. E nisto, as formas de ver, os toques de conhecer, as revelações da Natureza, logo revivem: — Ainda há tempo — disse o príncipe, quase num sussurro. — Não para morrer, mas para viver. Ainda há tempo... para perdoar. (O idiota) Fiódor Dostoiévski.

Meus amigos americanos


Transcorriam os anos 60, quando conheci em Crato uma família de americanos aqui residentes. O pai, Frank Soules, missionário presbiteriano, fora meu professor de inglês, na Escola Natanael Cortez. Ele e um dos seus filhos, Dale, que também colecionava selos, das minhas atividades naquela ocasião. Lembro bem que, depois de uma dessas aulas, acompanharia em casa, pelo rádio os discursos inflamados do célebre comício da Central do Brasil, em 13 de março de 1964, praticamente o ponto culminante da derrocada do presidente João Goulart, deposto pelos militares no dia 31 daquele mesmo mês.

Passado algum tempo, agravavam-se os acontecimentos da Guerra do Vietnã e vim saber que um dos filhos de Mister Soules, Terry, o mais velho deles, morreria combatendo no exaustivo conflito.

Além desses, conheceria dois outros americanos em Crato, nos fins da década de 60, Bill e Paul, ambos pertencentes ao Corpo da Paz (Peace Corps), projeto americano de cooperação internacional, os quais estiveram no Cariri, residindo no Bairro da Batateira. Algumas vezes conversei com eles a propósito do que realizavam longe do seu país, enquanto buscava desenvolver os rudimentos do inglês que vinha adquirindo no Instituto Brasil – Estados Unidos - IBEU. Ambos seriam chamados de volta e levados ao Vietnã, onde perderiam a vida em combates. Antes de viajar, ainda encontraria com Paul, que sabia das implicações do seu retorno à pátria, e chorava feito um menino.

Um tanto de jovens dos dois lados em luta sucumbira naquele confronto do Ocidente com o Oriente, tempos ideológicos entre Capitalismo e Comunismo. Segundo a Wikipédia, site da Rede Mundial de Computadores, o total de vítimas da Guerra do Vietnã entre os anos de 1964 até 1975 é impreciso, oscilando entre 1 milhão e meio a dois milhões de vietnamitas mortos, entre civis e militares. Parte considerável da população economicamente ativa do país morreu durante o conflito. (...) Morreram aproximadamente 54.000 soldados estado-unidenses até a retirada dos Estados Unidos do conflito em 1973.

Mais adiante, no decorrer de período que vive em Salvador, retornei aos estudos da Língua Inglesa, e conheci outros amigos americanos; a minha professora Anne, da Associação Cultural Brasil – Estados Unidos, que viera ao Brasil pesquisar a capoeira na Bahia, que me levou para assisiti a um concurso de faixa das principais escolas da luta, num dos prédios do Pelourinho. Lá estava presente o Mestre Pastinha (Vicente Ferreira Pastinha), famoso capoeirista da Boa Terra, desparecido no ano de 1981. E conheci, ainda, um outro amigo americano, Dick, com quem viajei algumas vezes a pontos turísticos do Recôncavo, de Porto Seguro, no Sul baiano, e de Guarapari, no Espírito Santo. 

(Ilustração: Estátua da Liberdade, Nova York).

sexta-feira, 11 de abril de 2025

A flauta perdida


Elas eram duas, no início do sonho, semelhantes um tanto, ambas de cor bege claro, porém uma menos afilada; a outra, burilada nas extremidades, sendo desta é que se poderia tirar algum som primoroso. E naqueles instantes iniciais, foram tratadas de igual modo. Havia movimento em volta, qual arrumação de mudanças, de viagem. Muitos objetos, sacolas, instrumentos soltos entre peças. Arruma daqui, arruma dali, enquanto nem de longe se pensara com cuidado naquelas duas pequenas varetas, sendo uma delas a flauta de que, só depois, haver-se-ia de considerar a real valia na continuidade do que viesse pela frente.

Bom, nisso, dali adiante, o sonho viraria a busca contínua, não pelas duas peças, mas pela flauta, agora reconhecida que estava da sua função. Aonde pudesse estar, ali as atenções seriam voltadas com extremo zelo. Tal de revirar até as equipagens já fechadas, os móveis, caixas, tudo em volta, a imaginar sua procura na ausência. Às vezes, também debaixo d’água, nas sucatas esquecidas, na imaginação. A mim coube, na função de sonhador, indicar possíveis lugares onde estivesse. Lembrava, dalgum modo intuitivo, e lá corriam à cata de encontrar. Notava, no entanto, espécie de sadismo nos que estavam buscando, eles alimentando a certeza de nunca mais achar a bela peça donde nasceria o senso de uma razão absoluta, a música pura.

...

Transcorridos que foram aqueles esforços de localizar a flauta perdida naquele sonho, ao despertar vieram as primeiras avaliações do que aquilo significava. Estuda daqui, dali, no vácuo dos pensamentos, das cogitações. Dúvidas não persistiam, no entanto, da clareza da história vivida nessa aventura do Inconsciente. A força, o impulso, de desvendar o mistério das cenas daquela noite, daí, então, tanto e tanto, veio revelado no meio dos trastes em organização, vendo claramente ser a flauta perdida a pureza original. Das quantas oportunidades havia naquele esforço de ordenar a bagagem do que quer que fosse, a seguir nalguma direção, de comum esquecemos de considerar a importância dessa flauta primeira, origem do quanto existe de verdadeiro na consciência em formação.

(Ilustração: Anjo tocando flauta, de Bernardino Luini (Arte do Renascimento).

quinta-feira, 10 de abril de 2025

O fugitivo


Sua chegada ocorreu mais como um aparecimento, em plena moagem, no mês de junho. Veio cabisbaixo, desconfiado, no dizer do sertanejo. Meu avô ouviu a conversa dele, que carecia de arrancho; viajava das bandas de Iguatu e pretendia fixar residência num dos sítios da região, para trabalhar e tocar a vida. A sorte lhe favoreceu, pois o pedido foi atendido.

No canto do quarto, perto de janela que deva para o terreiro na frente da casa grande, instalou os poucos troços que carregava, mala pequena, rede desbotada, toalha e panos. Antes de buscar as primeiras tarefas, estirou a vista na estrada em frente, que dobrava numa curva logo depois de passar pela fieira das casas de moradores, situadas nas laterais da bagaceira do engenho.

Pegou com vontade no serviço. Jamais reclamava do tipo de atividade que lhe era confiada. Demonstrava gostar do que lhe fazia eficiente e produtivo. Engajou-se rápido no lufa-lufa da temporada de cana, ganhou o respeito dos demais, garantindo a confiança do patrão, que ensimesmado avaliava o acerto da escolha.

Quando lá um dia, manhã cedo, o que ainda se pode chamar de madrugada, o forasteiro, após abrir a janela do quarto de dormida, avistou, bem na curva da estrada, a fazer diligências na redondeza, compacto pelotão de polícia, armado e marchando firme no prumo do engenho, vindo quase na sua mesma direção.

Naquela hora, usava apenas as roupas debaixo, e mesmo assim, todavia, arriscou-se saltar para o alpendre, daí descendo, lépido, terreiro abaixo, no sentido das canas do brejo, a três centenas de metros no rumo norte, isso tudo numa disparada que os seus calcanhares alcançaram, acompanhado da poeira fina que levantava na pista. Soltou ligeiro a cancela e desapareceu no canavial que só espanto de bicho brabo, no princípio sacudindo os pendões, depois nunca mais.

Até hoje ninguém sabe com certeza donde ele vinha, para onde foi, e muito menos qual a razão de tão desesperada fuga...

quarta-feira, 9 de abril de 2025

Som de trombetas


(Emerson Monteiro, em parceria com o DeepSeek AI)   

Há certas manhãs em que o céu desce até a calçada, e, nisso, o ar se enche de presságios. Foi numa dessas vezes que acordei com um som de trombetas a percorrer o silêncio daquele instante. Não era das fanfarras estridentes dos desfiles cívicos, nem dos clarins desafinados de algum circo de outrora. Era algo mais grave, mais fundo, como se as próprias nuvens ali estivessem anunciando um tempo novo que vinha se aproximar.   

Saí à rua, e eis que a cidade seguia sua rotina habitual, indiferente. Os vendedores apregoavam suas mercadorias; os moto táxis zunziam entre os buracos e automóveis; as crianças corriam para a escola. Ninguém mais ouvira o som? Ou seria coisa da minha imaginação, dessas que costumam visitar os sonhadores logo ao romper do dia?   

Parei na esquina do Bar do Zé, onde anciãos já se reuniam para um cafezinho e as histórias de antigamente que viessem à tona. Perguntei se tinham escutado algo diferente no céu. Olharam-me com aquela piedade reservada aos que começam a perder o juízo.   

— Trombetas, seu Emerson? Aqui só se escuta o ronco dos caminhões e o berro dos políticos na campanha eleitoral.   

...

Voltei para casa com a sensação de que talvez o anúncio fosse a mim dirigido dalgum lugar do Universo, quem sabe?!. E, se era, o que significava? Seria um chamado, um aviso, ou o prenúncio de alguma transformação?   

Desde então, fico mais atento. Pode ser que um dia, quando menos esperarmos, o som retorne com outra intensidade. E, dessa vez, todos ouçam. Até lá, sigo na minha vigília, entre o mundo que é e o que poderia ser, ouvindo na brisa o eco distante de uma trombeta que ainda há de soar no tempo, certamente. 


(Ilustração: Sete trombetas, Wikipédia).

Os operários da serraria


Quando meu pai trouxe a família de Lavras da Mangabeira para Crato, isso no ano do centenário deste município, 1953, veio a convite de meu Tio Quinco, irmão de minha mãe que vivia aqui. Tiveram a ideia de montar uma serraria em um terreno que adquiriram no Bairro Pinto Madeira. E com poucas máquinas que, inclusive, funcionavam movida por motor a óleo diesel, vista a pouca força da energia elétrica que então existia na cidade, iniciaram o beneficiamento de madeira. Eram uma serra de fita e uma plaina desempenadeira, de onde faziam madeirame de casa, linhas, caibros, ripas, utilizando de madeira dura, qual denominavam a espécie que utilizam nas peças. Aroeira. Angico, Pau d’arco. Massaranduba. Braúna. As principais.

Nesse ofício, meu pai, que vendera seu patrimônio de safras, rapadura e gado, adquirido nos seus ofícios no Tatu, a propriedade de seu pai, investiu o que apurou no novo ofício, e foi trabalhar no eito, pegando no pesado, junto a um ou dois operários, naqueles inícios.

No correr do tempo, nós, que ficáramos um tempo ainda no sítio, uns seis meses, nos transferimos para Crato, e ficamos na casa de Tio Quinco, na Rua José Carvalho, próximo ao centro da cidade. Depois, iríamos para casa que ficava vizinha à serraria, uma construção de dois pavimentos, em cimento armado, raro naquela época, ali que nos ligava de perto ao novo ofício de meu pai, e, tirando os momentos de aulas ou estudos, eu passava os dias em acompanhar o trabalho dos operários.

Daí fiz com eles uma boa amizade, reconhecendo a todos como amigos. À medida em que os trabalhos se desenvolviam, em 1962 chegaria energia de Paula Afonso e as máquinas passaram a ser movidas a eletricidade.

Lembro deles todos, dos vários amigos que fiz entre os operários. Mestre Mulato. Mestre Manoel. Mestre Elias. Josa. Borginho. Mestre Raimundo Nascimento. Pedro. Assis. Zé Doca. Prancha. Gregório. Edmilson. Seu Antônio. Boa quantidade deles que residia em Juazeiro. Chegavam cedo e saíam na boca de noite, usando os ônibus de linha entre as duas cidades.

Mais adiante, trabalharam com madeira mole, principalmente o cedro, a fazer portas e janelas, e alguns móveis residenciais. Durante longas horas, ficava observando o desempenho daqueles profissionais da madeira. E tais lembranças permanecem, hoje, bem vivas em minha memória, daqueles amigos da minha infância na Serraria Monteiro, assim era denominada a empresa que duraria até a década de 70, chegando a ter até 18 operários, sendo considera a principal na atividade em Crato.

(Ilustração: Serraria, Wikipédia).

terça-feira, 8 de abril de 2025

Enfim o silêncio


Correnteza inevitável que desce adentro de universos até então desconhecidos, nisso arrasta consigo objetos e pessoas, caprichos e visões, nuvens e as cores dos dias ao sabor das circunstâncias. Mistério por demais sucessivo, desvenda um a um segredo de todas sementes. Conta e descreve o vácuo do que ocorre no íntimo dos horizontes. Nós, aqui estamos de olhos fixos nos detalhes da sequência de acontecimentos, sendo um deles em forma de gente. Houvesse qual, tudo em volta demonstraria o quanto ainda resta de certezas no coração, vultos amorfos, cheios de imaginação e furor, nas várzeas desse rio de correnteza inevitável que mergulha todos, então.

A persistência, pois, das histórias significa mais do que meros efeitos dos passados. Além de tudo, juntaram o saldo dessas muitas gerações que agora seguem seus feitos nos saltos de qualidade dos outros que existem. São milhares de pequenos gestos que fazem o instrumento de transformação e que escorrem através desses dias da história. Símbolos das tantas jornadas, aventuras, ilusões, dominam o ser e insistem continuar nas velhas manias e nos transtornos à beira desse rio de vidas e vidas.

Por isso, a fome continuada de encontrar a resposta, numa vontade incontida de desvendar o mistério e perceber dezenas e dezenas de milhares daqueles que sumiram ao primeiro gesto de revelação. Tocam, sim, rochedos e mergulham, trazendo de volta o instinto de existiu e jamais desaparecer na ausência. Fôssemos, porém, recordar o que trazemos grudado na lama dos pés, ali acharíamos o senso da busca de todas essas gerações.

domingo, 6 de abril de 2025

Futricação universal

 

Esse jeito assim de querer desmanchar o mundo nas próprias mãos, em fazer do drama humano uma farofa só, na velocidade com que acontece, deixa margem a considerar o tanto de esgotamento que ora impera na ordem dos contentes. Tais dobras de papel crepom numa lata de lixo, no tanto de inúmeras partes, viram as palavras, depois os pensamentos e sentimentos. Um farnel considerável de circunstâncias que andam soltas e agora que ressurgem num formato bem mais acelerado, na face dos meios eletrônicos de entretenimento.

São desejos de novas aventuras errantes dos atores espalhados pelo chão. Horas febris de instintos nas montanhas distantes. Qual o quê, de pura motivação, todos aguardam de alma penada isto de um mundo feito de cores e sonhos ao sabor das esperanças. Seres abstratos então acondicionados no íntimo das noites que persistem no coração querem conhecer a si e despertar noutros mistérios quaisquer.

Fôssemos, portanto, abrir espaço nas consciências, ali estariam os gênios de antigamente, cheios de planos, escolhas e aparente liberdade. Transitariam, horas a fio, no caminho estreito entre as ondas e o mar, na espera das luzes dalgum setor do Infinito. Pausariam, por certo, à margem dos fragmentos de tempo, que percorrem nas tradições e, decerto, dormiriam o mesmo sono dos inocentes. No correr das possibilidades, bem ali consiste viver as antigas aventuras dos filmes das quatro no Cine Moderno. De olhos meio cerrados, escolheriam ficar nas derradeiras filas, aonde, ao final chegaria, talvez, o perigo que ronda na sessão das tardes.

Quer-se-á, no entanto, retomar ao transe que possível, pois. Flores. Pássaros. Nuvens tangidas pelo vento. Raros ruídos de máquinas escondidas. Apenas aqui um coração que sacoleja na imensidão do quanto existe. Sombras. Vozes e sussurros. E o troar da imaginação, que alimenta o furor de tudo em volta. 

sábado, 5 de abril de 2025

Livros que impressionam


Sei ser a literatura de uso particular de leitores afeiçoados, silenciosos, ferramenta por demais valiosa, no entanto apenas a quem nela encontra afinidade. São muitos leitores espalhados em tudo que é canto, e as bibliotecas abarrotadas, fervilhando palavras e traças, mofo e distâncias infinitas a percorrer. Raros, talvez, nos dias atuais, se interessam, na verdade, pelos tesouros acumulados de quantas gerações. Eles, os livros, dos quais guardo boas lembranças, inclusive da época em que os li com maior intensidade, algo assim quais as músicas desses tempos, marcando fases distintas da existência.

Se deixar, a memória refaz quase tudo, os títulos, os conteúdos, as emoções deixadas, isto no abrir e fechar de olhos: Por quem os sinos dobram, de Ernest Hemingway, o primeiro livro de adulto que conheci, da biblioteca de Tio Alberto, irmão de meu pai. Quando minha mãe me viu com esse livro, logo avisou que estava cedo de ler, na minha idade, aquele clássico romance da literatura americana. Ainda que tal, insisti até o final, tornando-se dos livros que mais me influenciaram nas leituras posteriores.

Depois, li O general do rei, uma obra-prima de Daphne du Maurier, que também me tocou profundamente, não só pela história, mas somada a qualidade do estilo, vindo de entre os livros que Tio Alberto havia deixado na nossa casa.

Ao notar meu interesse pelos livros, tanto meu quanto de minha irmã Lydia, minha mãe cuidou de adquirir Obras completas de Machado de Assis, Obras completas de José de Alencar, Tesouro da Juventude e Mundo Pitoresco, que atenderam em cheio nosso gosto pela boa leitura.

Nisto, na sequência, vieram as obras de Antoine de Saint Exupéry, dentre elas O pequeno príncipe, Correio Sul, Voo noturno, Piloto de guerra, todos de valor inesquecível. E outros de Hemingway, que ficaram guardados na minha memória dessa primeira fase: Adeus às armas, Ilhas da corrente, As neves do Kilimanjaro e Contos.

Houve um irmão de minha mãe, Nirson Monteiro, ex-aluno dos Maristas, que muito me influenciou na escolha das leituras, levando-me a conhecer livros bons, quais A conquista do Acre, A Expedição Kon-Tiki, Vidas secas, O país das neves, A cidadela, Farol do Norte, Cartas do meu moinho, dentre outros. Com isto, fui despertando a procurar novos autores, até vir encontrar Jorge Amado, Érico Veríssimo, Sérgio Porto, Fernando Pessoa, Manuel Bandeira, James Michener, Jean-Paul Sartre, Albert Camus, O. Henry, Leon Tolstói, Boris Pasternak, Guy de Maupassant, James Joyce, Gabriel Garcia Marquez, Anton Tchecov, Júlio Cortázar, Jorge Luís Borges, Murilo Mendes, Alejo Carpentier, Otto Maria Carpeaux, e tantos e tantos mais, de uma lista de grandes escritores.

quinta-feira, 3 de abril de 2025

Os estranhos animais dessa floresta


Têm tudo a se querer, no entanto padecem de um parto prematuro que lhes corrói as entranhas da própria sobrevivência. Vivem disso, dessa animosidade bruta que formam no correr dos pensamentos. Nutrem com força a vontade nos menores detalhes, outrossim esquecem de amarrar o cadarço das chuteiras antes de entrar no campo. Seres por demais filhotes da dúvida em um tempo real e senhores das ilusões menores que as oferecem nos pratos cheios.

A falar disso, de tais espectros viventes desses mares a céu aberto, advém o instinto de querer ser um deles, apesar de quase dois terços dessa razão ficar nas paredes do passado. Buscar fontes confiáveis dos criadores de detritos presos à lama da incompreensão, e nisso fustigam os mesmos elementos que destroem. Fazem guerras particulares e constroem palacetes de vidro. Parelhas que sejam de bichos a conduzir velhas carruagens pelas encostas da fama, nem de longe se olham no espelho do caminho. Querem, a qualquer custo, fazerem-se de iguais aos detentores dos destinos. Conquanto sigam, pois, as velhas trilhas da perdição, cortejam a duras penas vivenciar os prazeres do Paraíso.

E tocam adiante galeões e galeões de tantas glórias, destarte satisfeitos em aguentar o mínimo de tempo sob as águas turvas que semeiam. Sabem de sobra a que vieram, pois. Passar daqui algum tempo e depois devolver a carcaça aos portos da mais imensa solidão. Trastes arrevesados na esperança, são eles os protagonistas dos dramas de outrora que insistem grudar aos caules das tantas árvores, hoje esquecidas deles sós, às quantas dores.

Conquanto que sejam sabedores de experiências acumuladas, ainda que tal vasculham, só agora, os escombros da virtude à procura de si lá onde ficaram perdidos. Quem sejam, nem de longe imaginavam chegar a tanto. Prodígios da humana perfeição, pouco a pouco adormecem às sombras do que acreditavam existir, porém do lado de fora, bem distantes de todos seus sonhos. Ah, viajantes das estrelas, detentores das melhores condições de revelar a consciência que já trazem ali consigo do lado de dentro.

Temas correntes

 


(Ao estilo de Emerson Monteiro Lacerda – Autoria: DeepSeek (AI). 

Vivemos enredados em certos assuntos que insistem em voltar, como aquela vizinha que sempre repete a mesma história toda vez que a encontramos na feira. São temas que se repetem, teimosos, como o sol que nasce a leste ou o vento que sopra no inverno.

A política, por exemplo. Ah, a política! Sempre a mesma ladainha de promessas e desencantos. Os nomes mudam, os discursos também, mas o enredo permanece: esperança, frustração, e depois esperança de novo, como um ciclo de lavoura que nunca dá o fruto esperado.

E o amor? Outro tema que não cansa. Falamos dele como se fosse novidade, mas é velho como o mundo. Apaixonamo-nos, sofremos, esquecemos e recomeçamos, como se a vida fosse um baile em que a música nunca para, mesmo quando os pés já doem.

A morte, então, nem se fala. Ela ronda nossos pensamentos, aparece em notícias, bate à porta dos conhecidos, e nós, assustados, fingimos que não é conosco. Até que um dia, sem aviso, ela resolve bater na nossa.

E assim seguimos, girando em torno desses mesmos eixos, como piões que teimam em não cair. Talvez porque, no fundo, sejam esses os fios que costuram a trama humana – repetitiva, sim, mas sempre com algum ponto novo, algum detalhe que nos faz acreditar, a cada volta, que desta vez será diferente. E, no entanto, não é.

Mas seguimos de tal forma, porque é nessa dança de temas conhecidos que a vida se faz – e, quem sabe, se refaz.