segunda-feira, 28 de março de 2016

Palavras e apetites

O domínio das palavras bem vale arte e sabedoria, a sabedoria clássica, sem ser essa dos conversadores inveterados que levam outros na conversa, demagogos interesseiros da política vulgar dos dias humanos. Controlar o instinto de falar para aproveitar o fôlego, preguiça de agir na coerência abandona o valor das palavras de uso certo na hora própria. Enquanto isto, o silêncio acalma e fortalece. Mas quão difícil preservar a compostura e dizer o verbo justo e crescer com ele.


Nos inícios, a humanidade vivia de imagens e sons guturais, espécie de animais aprendizes do que se seguiria. Imagens visuais, desenhos das presenças do contexto das matas, e repetições dos desejos através de gestos sonoros. Palavras, que é bom, nem de longe, nas quebradas e montanhas. 

Depois, esse animal virou gente e passou a utilizar as fragrâncias nos livros e discursos, então nascia o ser sofisticado de projetos, negócios e calendários eleitorais.

Perpassados corredores, vieram de brinde os apetites gozosos da matéria falando mais alto no íntimo bloco do desejo. Instrumento de apego ao chão, o apetite fornece as justificativas de permanecer ligado ao corpo de matéria e requentar o real instante da separação definitiva de tudo que conhece através nas imagens e sons iniciais.

Fanáticos ainda dos afagos da carne viva que transportam, os antropóides deslizam pela pista do tempo esquecidos de levar em conta o que de essencial existe durante a história que constrói.  O tão sonhado princípio da felicidade larga¬, pois, fora do processo de existir, porquanto o tempo não passa, e nós é que passamos. Até criamos o relógio, o calendário, os almanaques, a fim de enganar a nós mesmos.

Diante, destarte, da velocidade do ar que preenche pulmões e do sangue que alimenta o coração, palavras e apetites dominam a teatro das operações, roendo feito lixas amoladas o intervalo estreito de viver entre os dois mundos, o de dentro e de fora, o de fora e de dentro.

sexta-feira, 25 de março de 2016

Manhãs de sol intenso

Quando as emoções chegaram junto trouxeram os pensamentos a cobrir de sombras que inundam de silêncio deste dia, nessa hora o vazio das tantas mobilizações que sacodem a floresta e viram metais retorcidos e poeira, e escuras fumaças. Claro que o amor vale a pena, alimenta de vida as sonoras gargalhadas adormecida em sonhos. Virá, sim, o dia como velhas fotografias amareladas de quem gostava tanto de amar os momentos. Pensamentos no entanto aos milhões de impacientes roteiros de festas que rumorejavam de conversas ali na solidão das portas fechadas da pessoa ainda fora da presença verdadeira do senso e da justiça real. 

Houvesse mais perguntas a respeito do firmamento e suas cores magistrais, e respostas mesmas nem um pouco qualquer haveria. E perguntar das consciências limpas de quem pudesse dormir em paz, sem carecer de angústias e tristezas no que diz respeito aos acertos e desacertos das transações cotidianas. Dormir à busca dos sinais reveladores nas aventuras do espírito a caminho da libertação, mas saber o quanto de prisões ainda retinham a fome da luz. Os vícios, hábitos e limitações. Desejos e vontades. A distância imensa entre o dois e o um que dói e alimenta o tempo de permanência neste mundo. Os comprometimentos sombrios e os comprometidos iluminados que conduzem o rebanho nas trilhas do depois. O funcionamento permanente da máquina da revelação, que tanto confunde e atormenta os gestos humanos durante largo período.

Entregues, pois, a si mesmos pela força da natureza original de se saber vivente, os artesões da fé organizam o palco de onde seguirão a novas estações, a deixar aqui só saudades e esperança, matérias primas da continuação em outras histórias. As dores cicatrizarão, os erros serão lavados da alma à medida dos arrependimentos. Ninguém permanece eternamente na ilusão, certeza certa e justa de controlar o desespero por vezes agressivo, nas horas do reconhecimento. Mágoas e remorsos um dia sumirão de tudo e haverá leveza nas circunstâncias em volta. Assim virá a solidariedade, a fraternidade, o amor verdadeiro, que tantos buscávamos nas responsabilidades que um dia receberam a cumprir, porém com fidelidade.

segunda-feira, 21 de março de 2016

A força dos acontecimentos

Das movimentações da natureza, desde a mais simples força da gravidade que sustenta seres e objetos neste chão arredondado, existe uma tendência a que se conclua pela existência do Poder Superior, autor da propulsão universal em tudo evidente. Essa necessidade imensa de esclarecimento das ações da realidade também dentro de nós, que fala, que grita, na exigência das circunstâncias. E grita e fala da sensibilidade dos elementos dentro da gente no desejo de afirmar a lógica de tudo existir e amanhã encontrar as respostas inevitáveis de acalmar o coração, pondo-nos a par da saudade e dos sonhos.

Querer construir edifícios eternos em cima de pequenos grãos de areia, eis a definição de todos nós, valentes soberanos da vontade. Dotados de razão nem sempre utilizada, tangemos o rebanho dos momentos nas quebradas dos séculos e vamos acesos nos interesses próprios. Olhos abertos aos sopros da luminosidade, abrimos espaços de sustentar projetos de amabilidade enquanto estes não ferirem os nossos caprichos e os interesses pessoais. 

Montanhas de obstáculos à concretização desses valores esbarram, pois, na porta do interesse dos demais. Daí a criação de tantas justificativas e falhas e provas perdidas de justiça e verdade. 

Por isso, da força dos acontecimentos que precisa de pouco dos habitantes da colmeia, dessa poderosa essência que transforma tempo em folhas ao vento, avaliamos a determinação dessa presença que recebe nomes diversos e explicam o domínio do Poder.  Há um Deus único e precioso. Quais fagulhas de fogos imaginários, nós, labiosos que dormem sobre os estercos das jornadas anteriores, sobreviveremos ao caos provisoriamente, até aquele dia da verdade absoluta que há de se encarar mais cedo ou mais tarde. Assim, só adiamos o instante fatal em que nada equivale à limpeza das sujeitas na forma de depois, quando voltaremos reencarnados aqui, no sentido de inteirar, lá um dia, a missão do que viemos buscar neste lugar de tantas belezas.

quinta-feira, 17 de março de 2016

Sempre a democracia

Mãe da esperança na política, sempre vem outra vez a democracia, invenção dos gregos de antigamente. Mesmo que se leve em conta o pluripartidarismo, na realidade apenas duas linhas sobrevivem os pleitos eleitorais: a oposição e a situação. Os que metem a viola no saco e os que abiscoitam o trono. Na órbita deles, o segmento dos indiferentes, radicais, teóricos ou românticos.

Alguma coisa mudou, no entanto. Estudos apontam para crescimento das mentalidades. Antiga limitação fixada em padrões infalíveis abre a janela às maiorias sedentas de justiça social. 

Daí vêm propostas nos quatro naipes, inclusive junto das paralelas da oposição. Toda possibilidade vale considerar, guardadas as restrições econômicas e o abuso do poder, Fórmulas de perpetuação, nos países atrasados, viciam o critério de seleção dos dirigentes, admitidas as aparências do atual regime, república envelhecida com o passar do tempo.

Uma campanha municipal no Cariri, por exemplo, indicará a síntese de tudo o que impera na consciência dos grupos sociais mais castigados pela palmatória da servidão, e orientará os rumos de seguir adiante. No campo da luta, aflorarão valores mantidos longe do palco: desemprego, sucateamento da saúde, da educação, insegurança pública, caos urbano da invasão dos automóveis e motos, e a textura política do sistema colonialista, que nunca desapareceu. Só muda de cara e engana o povo.

Necessidades reprimidas há séculos resistem aos sonhos. Esgotos. Calçamentos. Segurança. Iluminação. Água. Urbanização. Moradia. Idoneidade sofrida. Honestidade, que periga nos conselhos e tribunais. Exercício clientelista e ausência de participação efetiva das comunidades, somada a ausência de objetivos claros à solução das necessidades coletivas. 

O desejo popular recupera a paciência jamais perdida de manifestar seu espírito na força do voto. Assim, o espaço político, instrumento principal dos agregados humanos, lembra a inocência original da natureza.

Que venham os novos gestores a modificar para melhor essa história das gerações, a prezar o conceito que corresponde a responsabilidade, nos manuais da Política verdadeira, escrita com letra maiúscula.    

terça-feira, 15 de março de 2016

A porta

Era uma vez um mestre carpina de nome Pedro, que vivia com sua família em pequena povoação do interior sertanejo. Tirava o sustento das artes da madeira, fabricando peças primorosas, admiradas por quem as conhecesse, fama que propiciava constantes trabalhos.

Envolto com carinho no trabalho, Mestre Pedro demonstrava profundo interesse pelas coisas religiosas, praticando o bem, zelando pelos semelhantes, orientando, servindo e dando exemplos daquilo no que acreditava.

Certa feita, recebeu em sua morada ilustre caravana de pessoas querendo que ele fizesse a porta de templo em construção numa cidade distante. Essa peça deveria merecer cuidados especiais, porquanto a tal igreja significaria cumprimento de promessa ao santo padroeiro pela cura de uma das filhas de homem poderoso do outro lugar.

O artífice aceitou o pedido a ser feito em madeira de lei, e cumpriria com folga o projeto da porta trabalhada.

Alguns meses se passaram até localizar na mata um tronco indicado a confeccionar a encomenda. Movimentou pessoas e trouxe até a oficina cedro mogno linheiro e maciço. Outro tempo demorou serrando e planando as tábuas, quando, belo dia, iniciou a produção, juntando e colando as peças em um lastro precioso. 

Medidas exatas, acabamento esmerado, polimento e beleza... Restava cumprir o desenho que imaginara no rosto da madeira, fruto dos detalhes de um sonho do qual acordara no meio da noite, cheio de júbilo, com o que só enriqueceria a forma do artefato encomendado.

A porta do céu possuirá características de semelhante perfeição, imaginavam extasiadas as pessoas, querendo ver de perto o feito magistral obtido pelo mestre na superfície da madeira.

A essa altura da soma dos dias, haviam transcorrido três anos. O profissional ultimava os apuros do trabalho, pousado sobre os joelhos e cotovelos, suado, afilando traços milimétricos, quase invisíveis, com estilete delicado, a sulcar as riscas das tábuas, quando, daí, resolveu erguer a peça de lado, pela primeira vez, a observar na posição vertical. 

No levantar a porta do chão, onde ficara tanto tempo, se abriu fenda nas proporções do tamanho da porta, cratera de fundura sem limites.

Diante daquilo e face ao inesperado, Pedro entrou no espaço aberto, sumindo cavidade adentro, isto longe de alguém que presenciasse o acontecimento. 

Fim de tarde, e só então os familiares lhe notaram ausência quando vieram à oficina procurá-lo. Nada encontraram além da porta entalhada com esmero e as ferramentas deixadas pelo chão e o mais completo silêncio em volta. Nenhum sinal que fosse do artista, apesar de examinarem toda a redondeza e espalharem a notícia do misterioso desaparecimento.

Alguns contemporâneos do Mestre Pedro quiseram admitir, no entanto, que, depois daquele dia, sempre nos inícios de noite, sobre a humilde oficina brilhava estrela de cintilações intensas, a clarear por bons momentos os céus da redondeza.

segunda-feira, 14 de março de 2016

As fronteiras do querer

Ninguém que se preze larga de lado a força infinita do querer e se entrega de mãos beijadas às hostes dos inimigos, pois aqui, bem aqui, caberão quantas escolhas lhe cabem, famosas escolhas consagradas pelo Existencialismo. Somos aquilo que os outros deixam que sejamos, no limite extremo da liberdade humana, que na verdade permite ser que somos. 

O ser humano nasce livre a fim de concretizar as próprias escolhas a qualquer instante. Objetos e outros animais, estes, sim, ficarão de rabo preso à essência de ser que forem concebidos desde o início. Já nascem assim quais sejam. Preestabelecidamente feitos com dita finalidade, jamais realizarão o poder de outras possibilidades que não a que recebem, de querer ser só o que no princípio vieram destinados.

Ao homem, no entanto, concede o mistério recebe a existência e fazer dela o que vier escolher, restrito apenas ao que os outros humanos permitam. Mas podem, a qualquer tempo, mudar o destino primeiro do ponto de vista moral, intelectual, social, existencial. Ninguém virá única e exclusivamente submetido a um papel exclusivo. Caberá definir a que propõe existir. Com essa particularidade ímpar, detém o dom de querer, dotado de espaço infinito naquilo que dispõe trabalhar em sua essência, do que fará de si no decorrer dos momentos sucessivos das vidas. 

A dignidade, por exemplo, permeia essa tal oportunidade humana de elaborar o que quiser e fazer o que esteja consigo, matéria prima da história das criaturas racionais. Trabalhar e criar o caráter do ente soberano dos seus mesmos atos, eis o modo a que se destina. Ser livre, por isso, acompanhará todos os passos do indivíduo e as formulações do a que buscar. Nunca dizer que inexistiram as chances de descobrir nova essência a cada instante. 

Conquanto haja dificuldades, bloqueios, normas, épocas e cenários, o ente humano, porém, far-se-á senhor da individualidade e estabelecerá meios de criar as condições fundamentais da história, tanto pessoais quanto das coletividades. 

E o querer é este instrumento poderoso, ilimitado, ao nosso dispor, na intenção de fundar as metas dos novos objetivos ao longo da existência, hoje e para sempre. 

domingo, 13 de março de 2016

O perigo da série

Daqueles tempos finais dos 50 e iniciais dos 60, menino muito e cinema cheio a participar da exibição dos seriados americanos na sessão das 13h do domingo. Era típica festa popular dos tempos modernos, quisessem assim considerar os pesquisadores de plantão. Fechada a bilheteria e abertas as cortinas do espetáculo, o salão virava interação pura de coisa só, gente pelos corredores da sala, de causar espanto; nem se preocupavam sentar nas cadeiras, pois espalhavam alegria no território todo, mais situados debaixo do palco, face a face com os protagonistas do écran. 


Montado o aparato do clima, tome movimento e som de gritaria, assobios, palmas, berros desesperados muitas vezes, suor e lágrimas, medo, apreensão, ao barulho persistente dos ventiladores que só faziam barulho invés da refrigeração. Hoje revi isso no juízo, quando, inclusive, terminava de assistir a seriado exibido na Netflix (Breaking bad) e comentava à mesa do almoço os percalços daquele passado. Tempos dos Cines Cassino e Moderno, em Crato, fenômeno que achou esconderijo na memória e agora revive a inocência da gente da época distante.

Desde cedo começava a agitação do furdunço. Na entrada do cinema, vendedores de bombons, picolés, trocadores e vendedores de revistas em quadrinhos, pirulitos, agitação de fazer gosto. Os olhos acesos da moçada previa com bastante antecedência as emoções do lugar dali a pouco.

Lembro alguns seriados que acompanhei. Flash GordonZorroDurango KidSuper Homem. À luz quente do preto e branco, vieram até nós modos estrangeiros das produções dos meios de massa da comunicação. A preços módicos, víamos o episódio da série seguido de filme também em geral um cowboy de Roy Rogers, Gene Autre, Joel Mccrea, Hopalong Cassidy, heróis da conquista oeste da América do Norte.

Depois disso, do perigo da série, quando fica pendente de salvação o destino da mocinha, do mocinho, apenas longa semana de expectativa, à busca do próximo capítulo, enquanto a cidade transcorria nos afazeres da rotina. As horas pareciam andar mais devagar enquanto em si guardavam o mistério pelo ar. Porém sabíamos que tudo terminaria de jeito bom, porquanto heróis existem a vencer na hora final dos acontecimentos, inclusive nas histórias dos melhores filmes.

sexta-feira, 11 de março de 2016

Nutrir as sombras que passam

Nuns tempos lá atrás, quando inércia pareceu ganhar o jogo e ajuntar nos cantos o prazer dos lixos transformando sonhos em ilusão, naquela vez desgosto invadiu a tela da memória e causou espanto de rios cheios, sim, isto aconteceu, pode crer. Inutilidade crônica dominara o cérebro, espécie de bicho fraqueza que cresceria nos tamancos e sustentara o placar durante quase todo primeiro tempo. Ninguém que merecesse menor elogio, por mais insistisse, venceria nas urnas e chegaria ao poder. Era só fome misturada com fastio, prato indigesto das sopas sujas. Orgulho entranhado nas muralhas da ingratidão, arrogância de omissão encangada nos carrapichos. 


Mas de nada serviu tudo aquilo a não arrependimento que pudesse revirar as folhas secas e delas virar adubo que se obtinha. Fases de vacas magras, aparente juventude. Olhava em torno e o espaço apodrecia nas fibras dos desejos mórbidos de estultícia (qualidade ou particularidade de quem se comporta com estupidez). 

Bem na frente, ouviria dizer: - O castigo do vício é o próprio vício. O mérito da virtude é a própria virtude, - e casava no vazio do passado que atirara na lama dos grotões que ficariam perdidos na história que poderia ser bonita.

Onde viveriam as qualidades morais, os princípios essenciais da ética e do caráter, ninguém soube ninguém viu. Isso passou, sumiu, escafedeu. 

Contudo, depois somado aos depois, houve que reconstruir cada parcela da soma uma a uma, rejuntar nuvens do firmamento da alma meio morta, que renasceu pouco a pouco. Grudar de novo o instinto de vencer o desânimo, o desassossego e as depressões, deixados nos atos falhos da longa estrada vazia, portas da perdição que deram em nada.

Quanta força necessária de reconstruir melhor humildade, trabalho honesto, a dedicação a causas justas e postulados da religiosidade que mora acesa na consciência das criaturas humanas. 

Só imaginar facilidades, ganhações, malandragens e sabedorias pai d’égua, o arco da visão torna traste inútil o troco de encher a existência de farrapo e negações de si mesmo. 

Agora, há que ser inteligente e usar a verdade na confecção das possibilidades, horas ricas nas mãos da gente a tecer cortinas e revelações do amor de Deus sempre intenso na face da Esperança.   

terça-feira, 8 de março de 2016

A fome do ouro

Midas era um rei que adorava Dioniso, o deus do vinho, nos mistérios de quem lhe instruíra o poeta Orfeu. Devido a isso, achava-se portador de alguma sabedoria. Num certo tempo, trazido por camponeses do reinado, veio ao palácio Sileno, sátiro velho e bêbado, amigo do seu deus de devoção. 

Deveras impressionado com a visita inesperada, Midas cuidou de oferecer largos festejos ao visitante, logo transformado em objeto da admiração e do afeto de toda a corte, que o cercava de mimos e banquetes diários.

Semanas seguidas e o rei se detinha a ouvir as longas histórias que o estrangeiro passou a transmitir nos salões admiráveis do reino.

Dentre essas narrativas, Sileno deu notícia de, em algum lugar, existirem dois rios, num dos quais crescia árvore cujos frutos envelheceriam quem os utilizasse. No outro, do contrário, haveria, por sua vez, árvore de frutos rejuvenescedores, história contada e recontada pelo ancião.

Até que um dia o sátiro resolveu convidar Midas para conhecer de perto Dioniso, ambos seguindo nesse propósito caminhando pelas margens do rio Pactolo. 

Chegados ao destino, o deus, feliz com o retorno do amigo, permitiu a Midas declinar qual o seu desejo maior e o satisfaria. De logo, o rei chegou a pensar nos frutos daquela árvore da juventude da história que ouvira do sátiro, porém escolheu mais riqueza, e pediu o dom de transformar em ouro tudo aquilo em que viesse a tocar.

Daí, o desejo se concretizou, motivo de euforia do soberano satisfeito, que viajou de volta aos seus domínios cheio da calorosa empolgação que nele despertara o atributo adquirido. 

Tocasse em pedras, gravetos, espigas de milho, o que fosse, transformava-os em ouro puro. No palácio, bem na chegada, tocou nos pilares, portões, móveis, e tudo reluzia de causar espanto aos súditos boquiabertos. 

Contudo, quando sentado à mesa, na hora da refeição, assustou-se por conta dos primeiros percalços da habilidade adquirida, porquanto ao pegar e levar à boca os alimentos, tão só mastigava peças ríspidas do metal precioso em que se transformavam pelo mínimo contato das suas mãos. Mesmo os dentes ofereciam igual resultado aonde penetrassem.

Na verdade, por isso, uma aflição descomunal abalava o reino e o ânimo de Midas quando, descuidoso, abraçou o filho querido, virando-o de repente em estátua dourada.

No auge do desespero devido a tudo à função, o rei buscou outra vez as posses do deus Dioniso, a qualquer custo; reclamava cancelar o dom e reaver o estado de pessoa comum que perdera.

Após observar tais resultados práticos da lição da cobiça na vida do devoto, o deus acatou a postulação e ensinou que ele procurasse o rio Pactolo e ali banhasse o corpo durante longas horas. Em consequência, as águas corriam rebrilhantes, recamando de pepitas de ouro margens e barrancos. 

Exausto, triste, Midas perfez o caminho de casa, a lembrar saudoso da família e dos transtornos que causara. Ao recolher-se nos cômodos reais, inobstante, vejam o que sobreveio: Vivinho da silva, o filho, sorrindo, correu-lhe ao encontro, proporcionando o mais extremoso dos abraços ao velho pai realizado.

segunda-feira, 7 de março de 2016

Cavernas do sentimento

Tais trilhas que uma vez indicaram o Sol no coração, partículas vivas da emoção que navegam soltas dentro de vasos, veias e artérias, viajam vermelhas de vergonha de ser sinceras na presença íntima do Ser de cada um de nós. Prudentes ou desarvoradas, marinheiros desse movimento, as máquinas do organismo fumegam horas de minutos e tangem o desejo das paixões feito animais soltos no deserto das pessoas humanas. A gente ama por vezes até o limite do desespero de que os outros nem liguem a isso de que são amados, no entanto satisfeitos, no princípio da vaidade dolorosa do orgulho. Olham nos olhos doces da beleza e sonham noutros leitos, outras dimensões longe da realidade atual daquela criatura dispensada. Jogam no firmamento o ânimo das saudades abandonadas ali bem no lixo do passado e veem o tanto de amor que fervia no universo das pessoas que alimentam mesmo as impossibilidades. São contas correntes da virtude da esperança nos discos das novas contradições. Farejam a fome do carinho e neutralizam a força da animalidade pura e simples. E nesse passo seguem os barcos. Praias desertas e sóis dos mais intensos ritmam as pulsações crepusculares. Sombras voam assim no verão dessas almas atormentadas, poetas e filósofos pelo furor da vontade contrariada, e acalmam por si a presença do pecado nas matas escuras do Paraíso abandonado. Ordenam o futuro em toda tempestade. Evitam que a fome das letras macias da Verdade corte o leite da felicidade, ainda que seja doutros modos o controle absoluto da fertilidade. Imperatrizes das escolhas, desenvolvem o domínio da oração noturna diante da construção das gerações que se sucedem. Quem quisesse, pois, desenvolver a ansiedade e soltar as feras na procura da árvore do Mal e do Bem por certo acharia o momento ideal da calma no seio do coração, evitando o desassossego da consciência que arrasta lento o filme da transformação e da imortalidade, e já seria o deus das oportunidades atiradas goela adentro, e fervilhantes habitaria os redutos da Luz que aguarda de braços abertos esses fugitivos da incerteza certa da amabilidade abençoada.

sexta-feira, 4 de março de 2016

O bem maior da democracia

Juntos e somando força seremos resistentes e cruzaremos todo obstáculo que por ventura se nos interponha à frente, desde que trabalhemos unidos sob mesmos ideais de liberdade, democracia, honestidade. Os que conhecem tempos difíceis, quando direitos existiram às escuras, debaixo de sete capas, afastados das oportunidades de participar, valores da cidadania longe do cotidiano, podem contar o quanto machuca sofrer momentos de ajustes e possibilidades e construir os regimes democráticos. As soluções passam, deste modo, no trabalho coletivo, elaboração comum que significa sempre a mais valia das sociedades. E esperar de braços encolhidos demonstra quase um nada, diante dos embates da grande humanidade.

Foram milênios de conquistas até usufruir do império da lei, obtenção da voz de todos através do sufrágio universal. No entanto, ainda persistem na Terra os equívocos da violência no domínio de países e populações, furor de grupos sanguinários que corrompem e subjugam multidões, ocasionando a destruição das famílias, males e traumas de consequências imprevisíveis. Daí a preciosidade do direito à vida, à civilização dos tempos de paz e respeito às liberdades individuais. De sã consciência, ninguém jogaria ao acaso tantas vitórias, que hoje dispomos, porquanto a voz das urnas oferece escolhas de métodos e lideranças ao gosto sadio de largas transformações.

Consta das épocas a dedicação aos bens maiores da paz e do trabalho, fatores inevitáveis dos prêmios sociais que ansiamos em horas de amargor. O justo qual norma fundamental de superposição do poder político dentro da égide dos bons costumes aperfeiçoados no decorrer das experiências. Agressão é vingança e desespero de minorias enfurecidas. Reagir com austeridade traz em si o primado da ordem e vigor das instituições, maturidade e conhecimento guardados como virtude e patrimônio das gerações, eis o recurso da participação.

 Contudo isto exige ampla dedicação, feitio minucioso de apurar a prática administrativa pública, critério e refinamento morais e éticos. Muitos erros, com isso, corrigidos, indicarão o caminho dos acertos econômicos e sociais, na mais sabia das conclusões oferecidas pelas chances da história, tanto no presente, quanto no futuro que virá de nossas mãos.

Ilustração: A liberdade guiando o povo (Eugène Delacroix).

quinta-feira, 3 de março de 2016

O relógio da Eternidade

A derradeira cena do filme Ran, do diretor Akira Kurosawa, mostra batalha decisiva entre dois clãs do Japão na época medieval. Em uma colina imensa, de verde esplendoroso, usando armas brancas, os grupos se digladiam encarniçadamente. Do alto, em câmera aberta, o plano enquadra todo o dantesco espetáculo, e segue se afastando lentamente, silenciosamente, até perder de vista os minúsculos seres que ficaram lá embaixo entregues à luta insana, restando, ao término do filme, tão só a vastidão do mundo sem maiores detalhes do que restaria das ocorrências históricas da guerra.

Quando, numa entrevista posterior, indagado a propósito do que quisera dizer naquela imagem cinematográfica, Kurosawa afirmou haver mostrado de qual modo devessem as ações humanas significar na sua relação com a Eternidade. O tanto em representa a pequenez dos dramas deste chão face ao Universo infinito das horas sem conta. 

Aspectos vários demonstram o excesso de zelo com que, por vezes, há preocupações e conclusões predominantes, porém fora da realidade maior e mais significativa do incomensurável. 

Já na China antiga, festas populares trabalhavam cães de palha com que as pessoas brincavam nas praças e ruas, simbolizando jogos imaginários de folguedos e danças, por dias seguidos, em comemoração a boas safras. Depois, exaustas daqueles movimentos coletivos, as populações reuniam touceiras monumentais dos tais bonecos e tocavam fogo nas fogueiras de palha, momento culminante dos cerimoniais. 

Em relação a esses eventos, Lao Tsé, no Livro do Caminho Perfeito, considerou: O céu e a terra são impiedosos e tratam a miríade de criaturas como cães de palha.

Assim, conquanto persistam supostos valores de eternidade nas manifestações que passam, no entanto o princípio universal de tudo é que determina os objetos no lugar dos objetos e os sujeitos no lugar dos sujeitos. Ninguém que se preze, igualmente, orgulhará de dominar o eterno apenas por presenciar que ele existe na imaginação, sem, com isso, correr o sério risco de se envaidecer e perder o essencial das existências, bem além das surradas vaidades humanas.