segunda-feira, 31 de março de 2014

A floresta dos sonhos

Ao erguer a vista na busca de observar a distância de chegar aonde se pretende ir, as pálpebras fecham sobre os olhos ressecados da viagem de longas e exaustivas horas. Diversas paisagens vêm tantas vezes e quais respostas, pôr os pés no próximo passo, certo de cumprir o que cabe, sem perguntar, querendo saber mais dos assuntos das memórias. 

Porém os dias passam em velocidade superior ao ritmo das percepções; crescem nos sonhos das seguidas noites as amostras do quanto reserva a Natureza a quem observar o trilho da razão que sobrevive embaixo das camadas inconscientes, os sistemas universais. As circunstâncias exigem, e os elementos assim coordenam o fio por onde possa mergulhar no labirinto das imagens em forma de enredos mágicos, roteiros sigilosos das travessias.

Buscar orientação pelos sonhos... Querer instruções coerentes das portas que devam ser abertas nos corredores da dúvida... Linhas obscuras e fantasmas inquietos nas sombras, ameaças ou alianças?... Na seqüência das indagações, o instinto salvador fornece a visão; em lugar do medo e dos prognósticos adversos, a Lei superior. Cobrir de valores as marcas escuras, cicatrizes, monstros, pesadelos... Sonhos de armaduras fortes em torno do castelo inviolável da certeza.

As cenas lógicas desses entes que penetram o íntimo do ser, na consciência das coisas, indicam as faces da dimensão poderosa da Luz superior, sinais evidentes da possibilidade que existe além da fria matéria, falas permanentes nos refolhos da alma.

Em meio às convulsões da procura, se abrem as palmas do mistério aos que se dispõem entrar no vazio, origem de tudo. A exatidão do Perfeito em viagens individuais, solitárias ou partilhadas, por mundos prováveis, nos abismos insondáveis. Altitudes infinitas, transes ilimitados, na esteira do tempo e do espaço, noutros palcos abertos.

A função dos sonhos domina, pois, o cenário de ideias em círculos de giz, conduzindo a outros níveis de compreensão; desperta as interpretações bem maiores do que meras palavras ditas.

Diante das manifestações humanas, a que melhor se aproxima do testemunho dos sonhos seria a da Arte e suas variações, desde música, pintura, literatura, cinema... Trabalhos incessantes de criadores acesos na intenção de chegar ao indizível, concretizar o intocável, esforço ardente de produzir bens simbólicos.

Através de expressões mitológicas, todas as civilizações permitiram exemplos de crenças imaginárias nesses redutos a que se aventuram os que descobrem os lugares oníricos, ricos patrimônios de estudos na floresta dos sonhos.

domingo, 30 de março de 2014

Impressões de viagem

Passados trinta anos, eis que regressei a Salvador, cenário onde vivera nove anos. E durante alguns dias revi dentro de mim, através de lugares e paisagens, o eu adormecido daquilo que guardara fruto das vivências e memórias, numa oportunidade rara, experiência emocional das mais tocantes. 

Outro mundo nascera ali nesse meio tempo. Qual tela própria dos séculos humanos desenharem locações de inigualável beleza, a Boa Terra se acostumou em receber as saudades da gente, desde momentos imemoriais da colonização portuguesa, primeira Capital e palco também das lutas holandesas. Nas ruas e logradouros, vagam fantasmas de dramas presenciados, as luas dos amores nascidos e desfeitos, porta da história nacional. 

Pisei os séculos das pedras redondas cheio das impressões reservadas no carinho dos anos 70 que fora depositar no áureo período das esperanças juvenis, agora revividos na busca de feições ao menos conhecidas que fossem. Contava ansioso a certeza de identificar nos passantes velhos conhecidos, amigos muitos que adquirira e jamais achei nas esquinas de cantarias e conventos. 

Entrei no banco em que trabalhara, no Terminal da França. Demorei algumas horas no Comércio, Mercado Modelo, Conceição da Praia, Elevador Lacerda, Terreiro de Jesus, Pelourinho, Praça da Sé. Rezei nas igrejas seculares, observei reverente o por do sol sobre Itaparica, pedaços de pensamentos e sentimentos espalhados no brilho intenso do mar da Bahia, tetos, paredes e chãos monumentos de luz acesa na alma, no entanto ninguém que houvesse dos pares de antigamente. Olhava as fisionomias dos habitantes na busca de traços próximos do que deixara, sem, contudo, apurar menores lucros de sucesso. Semelhante aos mineradores, trabalhei silencioso cada fisionomia debaixo dos cabelos tingidos na química das horas vagas, ouro entre cascalhos, porém só restaram terras de turistas e pessoas novas a preencher os pagos errantes da arcaica solidão que transportava dentro de mim.

Porto da Barra, Rio Vermelho, Piatã, Itapuã, Pituba, Amaralina, Boca do Rio, Baixa do Sapateiro, Vasco da Gama, Ladeira da Praça, Nazaré, Ribeira, Monte Serrat, Mares, imagens nítidas gravadas nos nomes poéticos dos bairros da retina, marcas fixas que persistirão, sei disso, entretanto utilizadas por lances comparados do que apenas testemunhara, agora na peleja de achar a essência que sumiu, longe das personagens visíveis noutras praias. 

A receber tamanhas dádivas de dois tempos tão preciosos, lembrei de poema de Manuel Bandeira, Profundamente, a dizer dessas minhas lembranças baianas tão queridas: - Estão todos dormindo / Estão todos deitados / Dormindo / Profundamente.

terça-feira, 11 de março de 2014

O andor

Desde cedo naquela tarde, tia Vanice resolvera se dedicar a decorar o andor de Nossa Senhora da Conceição para a festa do dia seguinte, a ter como ponto alto uma procissão pelas estradas do Tatu, percorrendo paredes dos três açudes chegando até a cancela do Xique Xique. Depois, já de noite, aconteceria a coroação tradicional, em frente da pequena capela, acompanhada de missa que reuniria, como nos anos anteriores, os habitantes e a vizinhança do lugar.

O andor, peça bem torneada, passara guardado o ano todo, a ser usado tão só nos festejos da Padroeira. A maneira de enfeitá-lo mudava de pessoa a pessoa, conforme habilidades. Uns preferiam forrar de seda rosa, azul ou branca, com algodão à guisa de nuvens. Daquela vez, fora escolhido o papel crepom de cores suaves.  

As várias folhas recortadas e coladas a grude de goma envolveram o nicho de transporte da Santa, ficando de fora apenas os braços de apoiar nos ombros dos carregadores. Tia Vanice dedicava, pois, todo seu carinho no amarfanhar dos desenhos de papel cortado, realçado as flores do arranjo colorido. Esmero maior impossível, obra-prima da sacra elaboração. No feitio da devoção agreste, lá pelos páramos celestiais, a virgem, decerto, sorria agradecida de contente.

Recolhidos os instrumentos da tarefa, agradecimentos apresentados às auxiliares da boa ação, que também haviam lavado o piso da igreja, espanado e recamado de toalhas brancas os altares, fim de tarde perfeito de quem satisfizera o dever e agora apreciava da calçada fronteira as tonalidades vivas do Sol se despedindo, no poente sertanejo.

Naquele mesmo momento, retornavam ao aprisco as ovelhas; umas, mais, outras, menos apressadas, a formar, elétricas, o rebanho único, na busca do chiqueiro próximo da igrejinha, junto da casa de Seu João Preto. Nisso, alguns dos animais, que catavam o que comer, arriscaram uma espiada furtiva para dentro do templo que permanecia de portas abertas.

A criação, talvez tenha pressentido qualquer coisa de alimento na maciez decorada do andor, deu em cima da bela composição de papel, devorando-a até chegar à madeira, motivo suficiente das lágrimas sentidas, desconsoladas, da tia, notificada ao som das gargalhadas travessas de meu pai, que, comovido, ainda encontrou tempo e material para refazer todo o trabalho antes do início da procissão.           

Ato de bravura

Era um pouco antes da meia-noite de 04 de agosto de 1930, quando o apito da maria-fumaça ecoou na Estação Ferroviária, dando partida na composição da Rede Viação Cearense que levaria o efetivo do 23.º Batalhão de Caçadores, sediado em Fortaleza, com destino a Lavras da Mangabeira, inteiro do Estado. A missão ainda não revelada do contingente viria ser de vigiar o acesso à Paraíba, onde, na cidade de Princesa, ocorreram confrontos ameaçadores.

Sob as ordens do tenente-coronel Pedro Ângelo Correia, o 23.º BC se deslocaria até Souza, levando, porém, inoculados germes da conspiração entre os oficiais, que logo engajariam na revolução.

Contudo, o comandante da tropa seria o maior entreve aos rebeldes, dado seu zelo e o rigor no cumprimento do dever, firme de vontade e enérgico nas atitudes.

Às 17h15 de 06 de agosto, o batalhão chegou a Lavras. No dia 12 do mesmo mês, às 6h30, voltou aos trilhos com rumo ignorado pela soldadesca, às 13h adentrando a cidade de Souza.

Naquele dia se fechava o cerco paraibano pelas tropas do Exército, no sentido de evitar o levante armado que fermentava no Estado após a morte de João Pessoa, alimentado com armas e munições que cruzavam diversos pontos da fronteira.

Iniciavam-se, no entanto, as defecções entre os diversos níveis da guarnição. Pensasse que não, e o movimento tenderia crescer, originário de outras fontes externas, no próprio oficialato.

Na madrugada de 04 de outubro, se ouviu um disparo de fuzil efetuado pelo primeiro-sargento Manuel Francisco de Lira, fiel ao comandante. Desde então ações desencontradas mobilizaram o Posto de Comando. De início, os insurretos quiseram anular na força física Pedro Ângelo e evitar maiores consequências. Após o tiro as coisas se precipitariam.

O comandante veio à porta do posto, local da imediata afluência dos soldados e oficiais, e quis saber a causa do barulho inesperado.

- O batalhão está sublevado sob o meu comando, e o senhor se considere preso de ordem do general Juarez Távora – foi o que lhe resposdeu o tenente Ary Correia.

Indignado e reafirmando a condição superior, Pedro Ângelo fez fogo à queima-roupa, gerando celeuma intensa, tanto dentro, quanto fora do prédio.

Algumas horas mais e o claro da manhã que se aproximava evidenciou outras escaramuças, nas quais sairia ferido com gravidade o major João César de Castro, ocorrência testemunhada pelo único sobrevivente da hora, o soldado Clóvis, seu ordenança. O comandante Pedro Ângelo Correia resistiria com denodo aos rebelados.

Segundo descreve Otacílio Anselmo e Silva, integrante daquele batalhão, no artigo O Ceará na Revolução de 30, publicado na revista Itaytera n.º 1, de 1955, do Instituto Cultural do Cariri, Crato CE:

O soldado Clóvis ouviu o derradeiro brado do herói: - Não morrerei acuado como um cão. Vou morrer no campo da honra.

Vimo-lo reaparecer no meio da área e penetrar no banheiro ao lado oposto de onde saíra, após executar um disparo. Uma bomba arremessada sobre o teto afugentou-o dali. Ao sair, foi colhido por uma descarga no centro da pequena área, junto ao portão de ferro. Tombou fulminado, em decúbito ventral. Tinha à mão direita uma pistola Parabelum, sua arma regulamentar; no bolso traseiro da calça estava o seu inseparável Smith & Wesson com o cano voltado para cima; e a seu lado, não muito longe, o mosquetão que lhe saltara das mãos. Seriam sete horas da manhã.

Ao ser notificada por emissário do 23 de que Pedro Ângelo se achava prisioneiro e com saúde após a rendição do batalhão que comandava em Souza, sua esposa, ciente da coragem e obediência do companheiro, disse aos filhos do casal:

- Botemos luto; vosso pai morreu... – de acordo com o texto citado acima.

Amor e destino

Desde o início da relação que ele notou a importância de sua presença em tudo por tudo. Ela crescera diante de paisagem qual sol resplandecente em manhã primaveril, tonalizando cores e realçando o formato de beleza. Quisesse imaginar diferente e haveria multidões de argumentos desfazendo chances de mudar de opinião. Nisso Hipólito se rendeu dolente nos braços de Alzira, fiel companheira de inverno e estio, consequência natural, trilho insuspeito do carinho da paz.

Contudo jamais haveria de considerar real o objetivo daquela mulher na sua vida.

Uma vida passada se envolvera de modo delituoso com pessoa de outro casamento. Perante as leis da reencarnação, a fim de resolver o impasse no processo evolutivo, condicionara passar por situação assemelhada, respondendo sob o véu da justiça ao que impusera a outros, nos tribunais da Eternidade. Sofreria não a título de vingança ou castigo, porquanto ditos fatores inexistem nos códigos do Céu, mas submeter-se-ia ao crivo da lei do retorno em que se merece o que plantou.

A companheira viera, pois, ao sabor das circunstâncias da colheita. Sem propósito preestabelecido, encontraram, certa noite, os giros de um parque de diversão dessas festas de padroeiro, e se engraçaram um pelo outro. Amor maior talvez existisse (quem sabe?), hipótese no entanto negada pelos dois amantes fiéis incondicionais.

Anos e anos de felicidade transcorreram céleres, somada à chegada dos filhos. Doces enlevos e amplas satisfações impuseram àquelas vidas padrão incomum de família exemplar, nos tempos críticos da indiferença dagora, cercados na tecnologia indiferente dos meios frios de comunicação.

Hipólito e Alzira voaram tantas vezes nas asas da ternura que nada de especial percebiam, inocentes seres das mágicas horas do amor. Jamais avaliaram que, no dizer do povo, não há bem que sempre dure, nem mal que nunca se acabe. Trabalhassem nessa perspectiva e se guardariam dos ataques da fortuna inesperada.

Correram os dias ainda mais rápidos até o lodaçal da dúvida, desafinando as notas do bolero triste que cantaram num abrir e fechar de olhos. As folhas do outono levaram bem longe o pranto convulso, inundando vales e montanhas, misturado com preces magoadas, recitadas nas encruzilhadas do destino. Sofriam, porquanto amar se amavam de não caber no peito.

O cavaleiro negro da sentença chegou na máscara da paixão, para cumprir seu mandado. A pena significava destruição de Hipólito, o descaminho de Alzira e o desajuste dos filhos. A cada um seu quinhão, mediante a equidade soberana.

Aqui outro elemento se apresentou na escala das ocorrências... 

Antes de ministrar a justiça, coube dosar os desdobramentos posteriores das existências dos envolvidos. O peso do amor entre Hipólito e Alzira tornou valor tão raro que reduzira o delito, relevando as dores no suficiente a que o destino árido e técnico da responsabilidade viesse transformar em perdão a relevância do crime antigo Como resultado, o sofrimento amaciado nos corações reverteu em consciência os amargores. Na história deles, a família seguiu vivendo e cumprindo seu papel de união, salvando a felicidade naqueles corações doloridos e amantes. 

segunda-feira, 10 de março de 2014

Costumes

As dificuldades de transporte sempre acompanharam o ser homem nas fases da História. Exemplo disso, quando não havia os meios atuais de estradas e seus idolatrados veículos automotivos, deslocar os doentes no sertão exigia esforços inestimáveis. 

A solução encontrada tantas vezes era estender uma rede em uma madeira bruta e distribuir o peso nos ombros de valentes carregadores, perfazendo a pé longas distâncias na busca do socorro médico, sendo também essa a modalidade usada para remeter os falecidos ao pouso derradeiro.

Nos caminhos, quem encontrava um carreto sombrio daquele tipo logo queria, de curiosidade, saber o que conduziam seus portadores:

- É vivo ou é morto? - perguntavam de costume onde fossem passando com a maca, o que acanhava os vivos que tivessem de utilizar o tipo de ambulância do passado, pondo-os numa situação vexatória.

Sobre tais situações indesejáveis, o Padre Neri Feitosa, em seu livro Usos e Costumes de 50 Anos Atrás, conta que o Seu Pedro de Brito, varão residente no Quebra, sítio do Distrito de Ponta da Serra, em Crato, quando adoeceu e teve que ser trazido às pressas para se tratar na sede do município, se viu nessa condição de enfrentar tal embaraço, estendido numa rede levada  no ombro à busca da cura.

Em princípio, reagiu de não querer acordo. Preferia se acomodar nos matos a defrontar os agoureiros do percurso. E o doente, por nada deste mundo, queria ir na rede, com receio da pergunta costumeira - afirma o sacerdote em seu livro. No entanto, dada a persistência continuada dos familiares em cuidar da saúde do ente querido, o sertanejo aceitou fazer a viagem.

Justificados zelos, porém dito e feito, pouco demorou lhe acontecer o que temia. Envolto nos lençóis da jornada a caminho da cidade, conduzido nos ombros de dois caboclos fortes, na estrada, certo instante escutou, contrariado, a temida pergunta de algum observador:

- É vivo ou é morto?

Sem esperar a resposta dos carregadores, o enfermo afastou as bordas da tipoia improvisada, botou a cabeça para fora e, de pescoço esticado, ainda resmungando (- Eu não disse, eu não disse!), de logo revidou:

- É vivo, seu filho da puta! - e pediu que tocassem o barco.

domingo, 9 de março de 2014

A primeira expedição

Sob determinação do oitavo governador geral do Brasil, Diogo Botelho, no ano de 1603, chegou às terras cearenses o capitão-mor Pero Coelho de Sousa com objetivo de dar início à colonização da Capitania do Siará Grande.

Natural do arquipélago dos Açores, domínio de Portugal, e cunhado de Frutuoso Barbosa, donatário da Capitania da Paraíba, Pero Coelho entrou pelo rio Jaguaribe, realizando as primeiras incursões da nova terra. 

E ainda naquele ano, acompanhado de 65 soldados, aos quais reunira por volta de 200 índios guerreiros, permaneceu seis meses junto à embocadura do rio Ceará, onde consolidou uma povoação.

No início do ano seguinte, chegou a Camocim e, em seguida, se deslocou até a serra da Ibiapaba, em cujo sopé travou combates vitoriosos com nativos e exploradores franceses, entre eles fazendo prisioneiros. Daí, marchou rumo ao Maranhão, meta que não conseguiu totalizar dada a resistência de parte das tropas que levava, insatisfeita devido aos maus tratos do percurso.

Por isso, retornou ao ponto original, na barra do rio Ceará, aí edificando o forte de São Tiago, em região que denominou de Nova Lusitânia. Ciente de permanecer mais tempo no ponto escolhido, se dirigiu à Paraíba no sentido de buscar a esposa, dona Maria Tomásia, e seus cinco filhos, viagem marítima que lhe custaria ano e meio de trânsito, apenas retornando no ano de 1606.

Ao chegar de volta, porém, defrontou animosidade nos habitantes da vila que construíra, avessos às dificuldades no reabastecimento das instalações por parte do governo, motivo esse que os levou a sublevar, forçando imediata desistência da fortificação. A título de sobrevivência, Pero Coelho rumou à foz do rio Jaguaribe, erguendo na sua margem esquerda o forte de São Lourenço, pois ficava bem mais próximo do Rio Grande do Norte.

Além do desgaste de tantos empreendimentos, naquele instante outro obstáculo coube a Pero Coelho, fruto da primeira grande seca conhecida nas intempéries cearenses. 

Coagido pela falta de mantimentos, abandonado por efetivos orientados pelo seu imediato, o capitão Simão Nunes, e exausto, em desespero de causa diante do flagelo, só lhe restou deslocar a família e a guarnição que ainda levava consigo na demanda do forte dos Reis Magos, já no território riograndense, jornada de longos dias de exposição ao sol e às escaldantes areias praianas, léguas sem fim.

Esse capítulo demonstra os extremos da inglória aventura de Pero Coelho, revezando nas costas os filhos crianças, secundado por dona Maria Tomásia, entre soldados tristes e claudicantes. 

No segundo dia, cairiam as primeiras vítimas atingidas de fome, sede e esgotamento físico. O choro dos meninos lancetava de dor o coração dos pais aflitos. Sacudido pela morte de dois filhos menores, Pero Coelho emudeceu e se entregou ao desânimo mais profundo. Então a companheira chamou a si toda responsabilidade do comando da caravana e levou adiante os percalços da jornada.

Logo depois, o primogênito, de 18 anos, também pereceria, antes mesmo de serem recolhidos nas dunas fronteiras a Natal pelo padre Manoel Correia Soares, vigário do Rio Grande, que lhes viera em socorro.

A propósito dessa bandeira trágica (segundo Euzébio de Souza, em História Militar do Ceará), escreveu o Visconde de Porto Seguro (Varnhagen): Honremos a memória do infeliz capitão-mor Pero Coelho de Sousa, que tanto trabalhou, sendo inocente vítima de seus próprios esforços e da maldade alheia.

quinta-feira, 6 de março de 2014

Situações bem humoradas

Tempo das rinhas de galo, esporte perseguido pela proteção dos animais, e forasteiro viciado em apostas quis fazer uma fezinha, ainda que desconhecesse a fama dos bichos contendores daquela hora. Nisso, resolveu perguntar a um expectador qual era o galo bom entre dois que iniciavam combate. Sem titubear, o homem apontou aquele em que acreditava ser melhor.
Daí, o embate transcorreu de igual para igual, até o galo indicado perder fôlego e cair derrotado, para contrariedade do apostador. Este logo procurou o palpiteiro a fim de tomar satisfação:
- O senhor me enganou na escolha do galo de apostar.
- Não, senhor! O senhor quis saber foi do galo bom, e eu disse. Se tivesse perguntado qual o pelverso, eu teria dito que era o outro, esse que ganhou a luta, por ser valentão e resistente; e aqui nunca perdeu.
...
José Luiz de França, Zeba, alfaiate conhecido e líder político de Crato na época da antiga UDN, vereador de várias legislaturas e ex-presidente da Câmara Municipal, visitava em noite de comício as hostes gloriosa da sua agremiação na cidade de Nova Olinda.
Quando chamado ao microfone para discursar, seu Zeba expressaria todo seu entusiasmo em tirada espirituosa:
- Nova Olinda! Nova, porque és nova. Linda, porque és linda.
...
Ele, ao se hospedar na fazenda Condado, no Piauí, pertencente ao dr. Antônio Araripe, de manhã cedo foi visto pela esposa do dono da casa utilizando a escova de dente que a ela pertencia. Bem educada, a boa senhora considerou:
Seu Zeba, essa que o senhor está usando é a minha escova.
Sem perder o tom sereno e grave, o político cratense retrucou:
- Eu sei, dona Donita. Mas acontece que não tenho nojo da senhora, não.
...
Espedito Gurgel, esposo de tia Nildes, irmã de meu pai, demonstrava constantes preocupações devido às atividades profissionais que desenvolvia em Crato, a ponto de se tornar desligado ao extremo.
Certa feita, defronte à Estação Ferroviária, subiu de jipe a Praça Francisco Sá, indo jogar o veículo em cima de um dos bancos do logradouro.
Rodeado de populares, no afã do acidente, ouviu alguém dizer:
- Está tudo bem, seu Espedito. Só o jipe é que estragou um pouco ali na parte da frente.
Em face da observação, ainda meio abalado, tio Espedito retrucou:
- Jipe! Jipe! Que jipe?
...
Livreiro em Crato por mais de 60 anos, certa feita, Ramiro Maia recebeu intelectual de Fortaleza que lhe observava o estoque de seu comércio. Meticuloso, o visitante examinava os livros um a um, e avaliou com solenidade, indicando com a mão:
- Conheço todos eles; por dentro e por fora.
Tranquilo, seu Ramiro apenas sorriu de leve e revidou:
- Conheço todos; mas só por fora.

quarta-feira, 5 de março de 2014

Estrangeiros de si

Quer saber mais dos reais propósitos, finalidade última de andar este chão de tantos mortos, em que pisar faceiro representa o desfile das gerações. Numas dessas tardes de sábado quando acontecidos seguem apesar dos trâmites equivocados e suas rotinas, imensos vazios parecem tomar conta das circunstâncias, na lembrança vaga da luz na consciência a procurar o sentido.

Contudo a quem escreve cabe o solitário dever das respostas, invés de perguntar; autor presente, leitor ausente... Leitor presente, autor ausente.

Nisso, algumas vezes, questões podem vir nos aspectos comuns, meandros e impressões onde viver significa reunir experiência.

Por exemplo, quando padecem as dores atrozes de existir, criaturas se submetem ao crivo de penas atrozes, tragédias aos olhos da rua, das residências, dos hospitais, manicômios, presídios, becos escuros, vilas descalças. Período em que outros, no tempo ao lado, riem e festejam turnos ilusórios, tronos atapetados, parques alegres, salas de espetáculo, estádios, mostras faraônicas do estado sólido da matéria, puros adiamentos.

Desta forma, entre lágrimas e sorrisos, há distância infinita, não superior, no entanto, a milímetros estreitos que dividem dois lados de uma mesma moeda.

Aquilo de lembrar vizinhos abandonados dos amantes fogosos, flagrante impõe na contradição à roleta da sorte, na escola do mundo. 

E cresce o enigma de viver diante da lei da compensação: Alimentar sonhos de felicidade perene em meio às guerras e crises, valores da busca incessante do ser. Noutras palavras, equilibrar os pratos da balança da fortuna requer mínimo de senso de justiça, princípio de não fazer ao outro aquilo que não quer a si, nas palavras de Jesus.

Afirmações exigem, pois, esforço de transmitir intenções claras, que representa a luta de encontrar o Si próprio, no intuito de superar a trajetória impermanente de morar um corpo de carne até chegar a espírito puro, sublime instante da revelação final da essência.

Todos, sem exceção, transitam nessa faixa de personalidade com destino traçado de chegar a ser eterno, percurso das vidas reencarnadas. Ninguém vem aqui só a passeio. Nas horas amargas dos conflitos, afloram possibilidades do infinito, encontro com o Eu verdadeiro, na morte da vida temporal e no renascimento para a Vida.

Este parto cósmico requer conhecimento e renúncia, qual largar a Terra rumo às estrelas, invés de peregrino. Nessa hora de chegar à casa do Pai celestial, fruto dos degraus da natureza, calados, romperão o peito os solitários humanos, nascidos no âmago do coração. Assim, primeiros raios do sol da manhã invadem a alma com o brilho das bênçãos, cessando dores lancinantes, malhas do aço resistente da esperança, em atitude certeira do amor de Deus em nós.  

domingo, 2 de março de 2014

Quem muito abarca, pouco aperta

A diversão do homem coletivo, na Terra de hoje, a que ele muito mais aprecia com sobejas demonstrações diárias, é a violência, madrasta das atualidades em matéria de propaganda para um momento convulso. Fechar os olhos alguns instantes, e abrir em seguida, outro foco das desavenças sujeita populações aos hábitos perversos da guerra, com certeza prova da incompetência e dos transtornos econômicos sociais, no seio bendito das famílias, nos sonhos virados pesadelos de gerações inteiras, feridas profundas no corpo da grande humanidade.

Nesse quadro dantesco das ilusões de poder, os nanicos humanoides procuram, a todo custo, justificar sob o título de progresso as poucas décadas de existência no chão que passam as gerações, produtoras dos equívocos da história.

Tais ações, contudo, refletem pensamento generalizado de acomodação individual. Quer-se chegar adiante o conceito de serem pouco prováveis largas transformações de mentalidade, ainda que alguns creiam na força viva da educação. Na contrapartida, no entanto, as escolas políticas refletem isto, sim, do domínio das corporações sobre o cidadão médio, essas envolvidas diretamente com indústrias nefastas de armas, venenos, vícios, prostituição, pornografia, egoísmo em cima de novos egoísmos, realidade aberta a quem quiser reconhecer de consciência objetiva.

Diante do panorama, os que desejam anotar só os momentos bons, suaves, da mãe natureza, sujeitam topar ditadores infernizando a natureza a vender jóias falsas às coletividades e ameaçar a Paz, quais santos de latão.

No instinto brutal de dominar os outros, esquece o ser humano de dominar a si mesmo, o animal que tardiamente persiste trabalhar com as garras e as presas, invés de praticar a solidariedade e minorar os resultados de equívocos de milênios.

Bom, reconheço meu esforço em desenvolver temas amenos, falar das flores, dos pássaros, do ar puro, das matas virgens, dos oceanos azuis, das belezas do tempo eterno, do gosto de frutas doces, da leveza das crianças, da chuva, do vento, das estrelas, da Lua e do Sol. Porém importa coerência nas atitudes pessoais, no sentido, no mínimo, de revertermos, no íntimo de todos, o futuro do presente em luzes de novos amanheceres, nascidos de dentro do valioso coração.