quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

O muro

Na lombada do muro, deslizam incansáveis multidões. Visto de longe, há que se pensar nas longas estradas de mão dupla, sinalização, acostamento e tudo o mais que compõe as vias agitadas dos tempos dagora. Além disso, existem em cima do muro alojamentos, restaurantes, bares, mercantis, boates, cassinos e as tradicionais lojas de conveniência, onde, quando em vez, ocorrem paradas obrigatórias dos habitantes daquela parte de mundo. 

Uns já se conheciam de outras ocasiões; outros andam ansiosos por novos conhecimentos; são aglomerações, festividades, clubes, salas de projeção, dormitórios, inferninhos. Acontece que os passageiros do muro carecem de orientação, vagando adormecidos, desconhecendo o Caminho da Verdade. Vivem quais na embriaguez das ausências, fantasias, e nas ilusões, pois o palco das distrações nenhum meio oferece em termos reais e definitivos.

Linha viva, a lombada do muro indica percurso das jornadas terrenas individuais das criaturas humanas. Espécie de cidade estreita linear, contudo provisória, ativa e com pretensões de autossuficiência, semelhantes às estradas que cortam os territórios desse chão, que servem de motivo aos deslocamentos nas viagens da existência. 

Enquanto isso, de um dos lados, sem cessar, a Luz da Verdade persiste convidar os passageiros de cima do muro a descer e seguir o Caminho do Bem, conhecer a realidade que prevalecerá nas paragens do Infinito; do lado de lá, o gerente das ilusões e seus emissários trabalham, argumentam e demonstram, querendo manter a qualquer custo indivíduos só vagando na lombada do muro, espécies de zumbis sem rumo, sem sentido, resistentes em evitar os benefícios oferecidos pelo Bem.

Dentre aqueles, um dos indecisos avança e dirige insistentes palavras ao gerente das ilusões: 

- Que acha disso, desses chamamentos que vimos, com algum esforço, ignorando, de que sigamos o Bom Caminho? 

- Dizer o que, se o muro é meu? – convencido da função, assim ele responde.   

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Domínio solitário

Nas tardes mornas, quando os pardais xamegam no silêncio de outubro há pouco refolhado, e o rádio toca velhas canções de saudade, o coração sacoleja no peito falas de jeito surdo, nas apreensões da solidão. Da lucidez, algo sagrado reponta pelas frestas calorentas. Nisso, andarilhos param nas esquinas em busca de rever amores perdidos, barba por fazer, sacos encardidos às costas, de dramas acesos nos olhos tristes. Apenas ausência de outras horas, outras terras, enquanto o relógio monótono desconta cada segundo, passo cadenciado dessas moendas que pedem paciência de mãos estendidas ao infinito.

Aqui dentro, nesta sala enorme de vazios preenchidos de trastes, na luz da esperança contida, uma fome sorrateira de novidades se arrasta pegajosa pelas galhas retorcidas do jardim. Lágrimas em poças ainda recentes cintilam tinta brilhosa dos carrões de luxo que deslizam entre motos e semáforos, rápidos bólides, nas malhas frias das ilusões, enquanto uns silêncios impacientes de novo apresentam credencias às portas do calor.

Quer-se fazer de modo à toa coisas antes feitas de forma inútil, para reter o tempo em nós, porém as faces do presente reclamam folhas novas às árvores da vida. Amores flutuantes ainda persistem, acalmando a sede do prazer, clamor de rês desmamada, sabendo, contudo, ser eterno o direito dos prazeres que permanecem feitos fiapos durante o percurso do espírito ao caminho da luz, frias madrugadas abissais.

Quereres atrozes na carne... Doces espasmos de culpas... Descem os bichos à represa para beber água no sumir do dia. Eu, aqui, vulto pensante de ser sofisticado, me olho por dentro do que sou e revejo possibilidades na sombra que se desprende longa no estirão do sol. Quero a tranquilidade do voo cósmico das garças ao longe, espantos que respigam tintas brancas no azul esmaecido, que moldura a tarde.

Cá em mim essa oficina que desentorta pontos de interrogação em soberbas exclamações dispostas perante as peças do cômodo em que me acho prisioneiro, no entardecer impaciente. Olho o eu que resiste e sabe que sairá do outro lado das cercas, no velho trilho do gado que volta. 

Pensamentos assim escorregam altivos pelas dobras da ausência, e insistem continuar fiéis ecoando nas paredes do tórax ansioso, gritos compassados de sabiás distantes, a reverberar a mata cinza de sertão sofrido, pelas vozes misteriosas da noite.

Aviso claro escreve no círculo  solar de brasa rubra tudo isso: Amor e paz que desfiam certezas diante do modo de viver que nos é dado com força e persistência, nas certezas definitivas da mais pura verdade.

(Foto: Jackson Bola Bantim).

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

O fugitivo

A sua presença se deu mais como um aparecimento, isso em plena moagem, no mês de junho. Vinha cabisbaixo, desconfiado, no dizer do sertanejo. Meu avô ouviu a conversa dele, que carecia de arrancho, viajava das bandas de Iguatu e pretendia fixar residência num dos sítios da região, para trabalhar e tocar a vida. A sorte lhe favoreceu, pois o pedido foi aceito.

No canto do quarto perto de janela que dava no terreiro da frente da casa grande, instalou os poucos troços que transportava, mala pequena, rede desbotada, toalha e panos rotos. Antes de buscar as primeiras tarefas, estirou vista na estrada em frente, que dobrava uma curva logo depois de passar pela fieira das casas dos moradores situadas nas laterais da bagaceira do engenho.

Pegou com vontade o serviço. Jamais reclamava do tipo da atividade que lhe era confiada. Demonstrava apreciar o que fazia, eficiente e produtivo. Engajou-se rápido na safra da cana; ganhou respeito dos camaradas, garantiu a confiança do patrão, que, ensimesmado, avaliava o acerto da escolha daquele trabalhador.

Quando lá um dia, manhã cedo no que ainda se pode chamar de madrugada, o forasteiro, após abrir a janela da dormida, avistou bem na curva da estrada, a fazer diligências pela redondeza, compacto pelotão de polícia, armado e marchando firme no prumo do engenho, vindo quase na mesma direção da casa grande.

Na mesma hora, ele usava apenas as roupas debaixo, e assim, todavia, arriscou saltar no alpendre e daí descendo correndo, lépido, terreiro abaixo, no sentido das canas do brejo, a três centenas de metros, rumo norte, isso tudo em disparada que os calcanhares alcançaram, acompanhado da poeira fina que levantava. Ligeiro, que nem cabrito novo assustado, saltou a cancela e desapareceu dentro no canavial que só espanto de bicho brabo, ainda sacudindo os pendões da plantação, depois, nunca mais.

Até hoje ninguém sabe a certeza donde ele vinha, para onde ia e foi, e muito menos qual a razão de fuga tão inesperada... 

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Os camelos

Na feérica Bagdá das mil e uma noites reinava um califa de imenso poder e largas posses. Casado com lindas mulheres, não lhe faltavam visitas ilustres, procedentes de variados países, transformando sua corte em quermesse de luxo e prazeres fáceis.

Os amigos das festas nutriam pelo califa rumorosa devoção, quiçá devida aos bens e quitutes fartos, nos salões suntuosos, quiçá ao charme do poder, a dominar cidades e imensos territórios.

Aquela vida preencheu vários períodos embriagadores que, belo dia, chegaou ao final de jeito brusco. Então, o califa reclamou outras vivências menos vulgares, mais espirituais, deixando de lado os hábitos que alimentara durante toda uma geração. 

Daí resolveu buscar a Deus, fonte dadivosa da Eternidade absoluta.

Convenceu-se de mudar de prática e aceitar responsabilidades antes esquecidas. Mudou o comportamento. Constante, passou a comandar romarias aos lugares santos, atitude beatífica de louvor e bonomia reverente. Aproximava-se com carinho das autoridades peregrinas cheio do desejo das revelações superiores. Isso, todavia, demonstrava apenas nos ambientes públicos, às vistas das pessoas. Nas caladas da noite, prosseguia repetindo iguais libertinagens das épocas antigas. Alimentava aparências e só fingimento.

Com isso, virou foco da observação dos súditos, a lhe seguirem cada passo. Ora uns enxergavam nele o homem revelado a que não correspondia, sofrendo destarte as consequências dos propósitos bons que aceitara na duplicidade dos papéis, o que os alheios recriminavam.

Em algumas ocasiões, se viu a lutar consigo mesmo, nas guerras de conquistas que iniciava para preservar a riqueza do trono. Na angústia da dúvida, caía nos braços soberbos das damas vaidosas e lascivas, ainda nas farras monumentais. Confundia tanto as pedras do jogo da Terra com as buscas do Céu que resvalou na descrença dos súditos.

Uma madrugada dessas acordou de sonho confuso ouvindo fortes pisadas no teto da alcova real, quais vindas de multidão impaciente. Viventes em marcha forçada quebravam as telhas, causando impressão que dele cobravam o cumprimento dos votos a Deus, desprezados, no entanto, pelas suas ações contraditórias.

Ouvia vozes, e resolveu tomar providências por conta da perturbação. Saiu ao pátio externo, chamou os guardas e efetuou diligências. Descobriu sobre a coberta do palácio alguns serviçais das cocheiras munidos de cordas, à cata de camelos fugidos naquela noite.

Intrigado, aborrecido, o califa pediu explicações do modo inconveniente adotado na procura dos animais, andando pela cumeeira das casas, ao que responderam:

- Para nós, será mais fácil achar camelos neste lugar do que para Vossa Majestade encontrar Deus pelos modos indisciplinados em que vem permanecendo, assim deixando a lição que o rei bem precisava naquela oportunidade.  

sábado, 22 de fevereiro de 2014

Conversa de engenho

As sombras longas do fim de tarde casavam bem com o clima morno que se estabeleceu no beco entre a casa grande e o engenho, onde, acocorados, os homens da moagem ouviam atentos as narrativas do cigano Lourenço a propósito de seus sonhos e andanças pelo mundo, embalados na zoeira festiva da meninada a correr em volta, agitação natural de quem aceita as coisas e nelas se integra.

Fez-se no ar apito estridente do locomove ao término da jornada, liberava no eito a turma dos cortadores de cana, enquanto os ouvintes estiravam na distância o sentimento para buscar a vegetação do outro lado da represa o voo suave das garças silenciosas, salpicando de brancas reticências o azul metálico da tarde em declínio, por cima de troncos calcinados das carnaubeiras; palmas tremeluzentes e ruidosas. O vento, por seu turno, escamava as ondas e distorcia a imagem das nuvens no leito do açude velho.

Palavras e aves do entardecer raspavam de leve os chapéus de palha dos caboclos, retorcidos pelo sol e manchados de suor, noturna sensação de abismo que entorpeceu os ânimos, alguns a esfregar os olhos no canto dos dedos, qual querendo despertar de sono pesado e guardar com esforço o que ouviam.

Lourenço pôs-se de pé; catou as cordas dos burros e bateu-lhes nas ancas, tangendo-os ladeira abaixo na direção do reservatório. Meio caladão, tinha desses instantes de ficar sem saber explicar direito o porquê de se chegar naqueles assuntos graves, novidades antigas do interesse de quase ninguém e necessidade eterna dos mortos e vivos. Saber para onde se vai depois, quando acabar isso daqui.

O focinho dos animais, na calma das águas, ia desenhando movimento de ondas sucessivas, chamando a atenção do viajante para o sentido que tomavam, indo quebrar nas margens de pedra e argila ou se faziam mais extensas e rumavam para longe, no leito das águas profundas, oscilando a babugem esverdeada e as moitas de mofumbo adiantadas no lodo, quebrando o repouso das rachanãs e galinhas-d’água.

- ... Muitas oportunidades individuais - repetiu baixinho as derradeiras palavras de há pouco, querendo gravar, qual saíssem de uma outra boca que não a sua.

Corpo intacto

Ao terminar sábia conferência que proferiu na cidade de Juazeiro do Norte, ocasião de um evento de Direito, o renomado jurista baiano Fernando da Costa Tourinho Filho transmitiu anotação no mínimo instigadora, face à originalidade histórica que apresenta. Em conseqüência, achei de bom alvitre recontar, fazendo-os parceiros de igual oportunidade.

Quando no fechamento de suas palavras voltadas aos aspectos vários da prisão no Direito Penal brasileiro, teceu considerações sobre achado incomum verificado em Roma, entre fins do século XVIII e começos do século XIX. No decorrer de escavações arqueológicas realizadas na Via Apia, trabalhadores localizaram uma urna mortuária, resquício da antiga civilização romana. Logo em cima da peça rara evidenciava-se a inscrição: Júlia, filha de Cláudio.  

Adotados os métodos próprios, foi aberta a urna e revelado o seu interior. Continha os restos mortais de bela jovem de aproximados 15 anos, com longos cabelos louros derreados sobre alvo e despido dorso, quedando-se todo o corpo no mais perfeito estado de conservação, livre das marcas destruidoras do tempo na matéria, o que sói acontecer, mas inocorrera.

A insólita descoberta causou espanto no seio dos que executavam o trabalho, motivando a rápida divulgação da notícia aos demais habitantes da comunidade, que afluíram em multidão para ver o estado inalterado daquela fisionomia, tantos séculos depois de retornar à natureza. 

O caso não demorou a chegar aos ouvidos das autoridades eclesiásticas, que, apreensivas com os rumos do episódio, nele anteviram evidências prováveis de manifestações pagãs voltadas a esse mistério, e, sob pretexto de melhor examinarem a relíquia, depositaram-na em sítio secreto, fora da visitação pública, jamais informado até os dias de hoje. 

Nas expressões persuasivas do Prof. Tourinho Filho, homem íntegro, por isso merecedor da credibilidade de quem priva do seu convívio, a visão maravilhosa daquele corpo eternizar-se-ia na alma de quantos ainda puderam contemplar a  incolumidade da sua beleza. 

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Uma luta chamada futebol

Houve um tempo quando até se falava em futebol arte. Vieram as copas do mundo, com o Brasil ganhando algumas e perdendo outras. Só então os meninos passaram a ver na bola o pino do meio-dia da fortuna. - Pé na bola, meu filho! – diziam, ansiosos, os pais diante da fortuna dourada do futuro, depois de sermos os campeões em 1958.

Depois, o tempo correu atrás da bola, também. Vieram os campeonatos brasileiros, as taças, campeonatos estaduais e locais, maratona de jogos que pedia anabolizantes, transmissões ao vivo de rádio, cota de tevê, vôos a todo lado,  norte a sul, leste a oeste.


Pelés, Garrinchas, Vavás, Gérsons, Ronaldos, Zicos, Amarildos, Romários, viraram artigo de exportação. Aquilo de pensar (sonhar) em jogar bola virou carreira de gladiador, corrida de criar massa muscular a todo custo. Primeiro, a academia; em seguida, as quatro linhas. Do pescoço para baixo, tudo virou canela.

Os meninos, artistas magistrais dos dribles, passes e gingas, caíram nas garras dos empresários e das torcidas; japoneses, árabes, espanhóis, italianos, a peso de ouro, carrões fantasiosos, sétimo céu da fama e amantes, assim correntes glamourosas escravizaram os santos da pelota.

Hoje, o que se diz: Houve um tempo quando até se falava em futebol arte. Lealdade, companheirismo, respeito profissional, passaram a ser história de moleza e frouxidão, pura melancolia romântica.


– Entrar em toda bola, seja por baixo ou pelo ar - exigem técnicos de clubes deficitários para manter a frente da tabela, ou ficar fora da zona de rebaixamento, - que futebol é coisa de homem.


O menino que saiu da várzea à busca dos estádios cheios significa autor de pernadas, carrinhos, velocidade pela lateral infinita, disparadas em prol do gol impossível, da fama, ainda na fase em que o corpo aguentar os bicos contundentes dos zagueiros pegadores da adversidade.


Os gramados já refletem arquibancadas lotadas de outros jovens aventureiros, noutras pelejas insanas, em mundo de que fugiu pelos túneis sentimentais do passado. As chuteiras viraram instrumentos de contatos mortais nas guerras dos coliseus sem trégua, entre a fome e a esperança, que rasgam a pele dos dias, nas noites das arenas contemporâneas. Novos autores de histórias gloriosas, infantes latino-americanos, sozinhos, solitários, apenas ouvem distante aquilo que iniciara tudo isso, lá no começo dourado. Nos campos da Suécia, as lágrimas de um Pelé adolescente antecipavam o que o rio da sorte fácil conduzia em suas águas turvas, essa desembalada disputa cruel dos jovens de chuteiras no reino modernoso do futebol. Toda a beleza dos passes longos e suas conclusões maravilhosas se tornaram aflição e desespero dos cartolas, no banco dos reservas, matreiros agentes dessa modalidade.



Futebol, eis o nome da nova luta que pariram as emoções da multidão nas tardes memoráveis de sucesso humano e suas experiências coletivas.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Sopa esquisita

Um casal vivia fase difícil mediante as repetidas farras do chefe da família, bebedor contumaz, boêmio frequentador assíduo de bares e botecos, gerando abatimento moral na esposa fiel, sempre a recebê-lo prestimosa em cada retorno das suas rondas viciosas.

Para manter a ordem da casa, era ela que lutava as pelejas de apurar dinheiros escassos e remediar os negócios, bordando, cortando cabelo, arrumando e faxinando residências, criando um bicho aqui, fazendo um bolo ali, um salgado acolá; forçando os filhos a sair vendendo aonde pudessem, contudo que nunca lhes faltasse o sustento. Pessoa de fibra só o tanto, dessas que existem aos milhares pela vida afora, de preservar o corpo da prole unido, chovesse, fizesse sol.

No entanto, como doíam a todos as incertas voltas do pai, cada noite. Por vezes, chegava mais cedo, mais tontos que acontecessem os porres, entrava aos tombos, revirava a cozinha à procura do jantar; sentava no chão, forrava o bucho, bebia água e caía na cama feito pedra, até amanhecer o outro dia. Isso quando não teimava com a mulher, lhe dando empurrões, quebrando alguns dos raros trastes da morada e terminando o roteiro da cozinha para o quarto da choça precária.

Outras ocasiões, avançado nas horas silenciosas, derrubava a cadeira que escorava a porta da frente, sacolejava no escuro a rede dos meninos adormecidos no meio da sala, nisso chegando ao fogão para pegar o prato, comer e dormir abandonado pelos cantos.

Dessa vez, trombudo, rumou à cozinha, caçou o alimento e avistou coisa parecida em cima do armário. De tão bêbado, achou ser aquele o prato a ele reservado. Sentou, comeu, ainda que notasse ruim de comer, fermentado, mas comeu... Reclamou por dentro, vez que houvesse o que houvesse, jamais deixava de passar bem nos cuidados da esposa. Reservou os protestos ao dia seguinte:

- E que comida esquisita foi aquela sopa que tu deixou pra mim ontem de noite, Maria? – logo cedo, indagou agressivo, olhos injetados e boca gosmenta seca da ressaca.

- Sopa? Que sopa, Zé?! A janta não nem foi sopa! – retrucou, pesarosa, a esposa.

- Sopa, sim. E cheia dumas misturas meio azedas, meio adocicadas, tipo gororoba. 

Intrigada com aquilo, a mulher se dirigiu à cozinha e abriu o forno, achando intacto o prato que, de noite, deixara para o marido. Olhou em volta e se lembrou da lavagem do porquinho que, há meses, vinha cevando no quintal, a fim de vender pelo final do ano e auxiliar nas despesas dos meninos durante o término da escola.

- Mas, Zé, tu comeu foi a lavagem do bacorim, homê! Precisa disso? Cria mais juízo, home, e procura melhorar as coisas dentro dessa casa.

O acontecido mexeu na consciência do marido e, de vergonha, desde aquela data nunca mais quis saber de botar um gole de bebida alcoólica na boca, livre do costume ingrato com a força da vontade, decisão e personalidade que causaria espanto dos velhos camaradas de ócio.  

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

A fome do ouro

Midas era um rei que adorava Dioniso, o deus do vinho, nos mistérios de quem lhe instruíra o poeta Orfeu. Devido a isso, achava-se portador de alguma sabedoria. Num certo tempo, trazido por camponeses do reinado, veio ao palácio Sileno, sátiro velho e bêbado, amigo do seu deus de devoção. 

Deveras impressionado com a inesperada visita, Midas cuidou de oferecer largos festejos ao visitante, logo transformado em objeto da admiração e do afeto de toda a corte, que o cercava de mimos e banquetes diários.

Semanas seguidas e o rei se detinha a ouvir as longas histórias que o estrangeiro passou a transmitir nos salões admiráveis do reino.

Dentre essas narrativas, Sileno deu notícia de que, em algum lugar, existiriam dois rios, num dos quais crescia árvore cujos frutos envelheciam quem os utilizasse. No outro, do contrário, haveria, por sua vez, árvore de frutos rejuvenescedores, história contada e recontada pelo ancião estrangeiro.

Até que um dia o sátiro resolveu convidar Midas para conhecer de perto Dioniso, ambos seguindo nesse propósito a caminhar pelas margens do rio Pactolo. 

Chegados ao destino, o deus, feliz com o regresso do amigo, permitiu a Midas declinar qual seu maior desejo, e o satisfaria. De logo, o rei chegou a pensar nos frutos da árvore da juventude, o que ouvira do sátiro, porém escolheu mais riqueza do que já possuía, daí pedindo o dom de transformar em ouro tudo aquilo em que viesse a tocar.

Veja bem, com isso o desejo se concretizou, motivo de euforia do soberano, que viajou de volta aos seus domínios agora preenchido da empolgação que nele despertara o novo atributo. 

Tocasse em pedras, gravetos, espigas de milho, o que fosse, transformava-os em ouro maciço. No palácio, quando chegou, fez rebrilhar pilares, portões, móveis, em tudo causava espanto aos súditos boquiabertos. 

Contudo, quando à mesa, na hora da refeição, se assustou, pois a habilidade adquirida ocasionava de pegar e levar à boca os alimentos que tão só mastigava virados em peças ríspidas do precioso metal em que se transformavam pelo mínimo contato das suas mãos. Mesmo seus dentes ofereciam igual resultado aonde penetrassem.

Na verdade, uma aflição descomunal abalava o reino e o ânimo de Midas. Devido ao dom soberbo, ao abraçar um filho querido, virou-o, de repente, numa estátua dourada.

Diante do desespero causado, o rei buscou, outra vez, o território do deus Dioniso. A qualquer custo, reclamava cancelar o prodígio, querendo reaver o estado de pessoa comum que perdera.

Após observar a lição da cobiça na própria vida, o deus acatou o outro pedido e ensinou que ele procurasse o rio Pactolo para lavar o corpo durante longas horas. Consequência, as águas corriam rebrilhantes, recamando de pepitas de ouro margens e barrancos. 

Com isso providenciado, exausto, triste, Midas perfez o caminho de casa, saudoso da família e revendo os transtornos que causara. Ao se recolher nos cômodos reais, inobstante, lhe veio, vivinho da silva, o filho querido, sorrindo, que correu ao seu encontro, proporcionando o mais extremoso dos abraços.

Parábola hindu

Conta Swâmi Abhedânanda, no livro O Evangelho de Ramakrishna, a história de um pai aflito em vista das agruras de perder um filho muito amado, quando pessoa virtuosa veio no seu socorro e lhe recomendou não desesperar, pois, caso conseguisse o veneno de uma cobra dissolvido na água de chuva caída dentro dos ossos de um crânio humano sob a influência de determinada constelação, sem dúvida alguma traria o filho de volta à vida.

O homem avaliou as quase impossíveis circunstâncias de obter o tônico milagroso, mas se manteve fiel ao propósito de reconquistar a vida do filho, e nisso objetivou reunir a todo custo tais condições. 

Saiu pelo mundo na busca do remédio com o ânimo sempre fixo no Deus poderoso, mesmo ciente dos obstáculos que enfrentaria.

No dia certo, pelo calendário subiria no firmamento a constelação recomendada. Achava-se sob árvore frondosa, onde decidiu ficar alguns instantes em repouso das canseiras da longa viagem. Avaliava, no mar dos pensamentos, o quanto aspirava merecer a graça divina e reanimar o filho querido. Então, na clareira do bosque, avistou caveira abandonada. E vejam o que aconteceu.

Nessa hora, os céus cobriam o nascente de pesadas nuvens. Pouco demorou até cair as primeiras gotas de chuva torrencial, que encheu de alegria o pai abnegado. As águas escorreram na folhagem e logo se acumularam também no interior do crânio.

Orações envolviam com força as preocupações do peregrino de olhos concentrados na obtenção do milagroso medicamento. Via chegar a circunstância da água de chuva recolhida no interior do crânio sob a constelação prevista na recomendação. Trazia no coração a certeza de que, em breve, se completariam todos os pressupostos e, diante disso, curaria o filho, sob a orientação do santo homem.

Naquele instante, pulou sobre o crânio, procedente dos arbustos em volta, um caçote afoito. Demorou pouco mais e surge rápida serpente no encalço do infeliz animal, rasgando-lhe a pele com as presas, lançando dentro do crânio as gotas necessárias de veneno que totalizaram a receita abençoada.

Cheio de gratidão, o ansioso pai exclamou: Senhor, por Tua Graça todas as coisas impossíveis são possíveis. Agora sei que a vida de meu filho será salva, diz o autor do livro citado.

Essa história contada por Ramakrishna exemplifica o valor da convicção verdadeira naquilo que se pretende, estabelecido vínculo efetivo com o Poder Superior, a permitir realizações dos ideais ardentes de toda alma convicta. A Ele nada é impossível! 

domingo, 16 de fevereiro de 2014

A divina conformação

Na Palestina, depois que Jesus fora crucificado e as coisas pareciam retornar à normalidade antiga, João, um dos apóstolos, não encontrava canto, qual dizem dos que enfrentam sem aceitar as situações limite.

Durante semanas, sua vida era só de amarguras, sofrimento por cima de sofrimento. Aquela ferida aberta com a perda do Mestre parecia crescer cada dia um pouco mais. Aonde seguisse, levava saudade imensa da divina presença, fugindo dele o gosto de viver, e ninguém conseguia consolá-lo. Tornara-se, por isso, preocupação de amigos e familiares.

Alguém lembrou, então, Maria de Nazaré, de quem devessem esperar palavras de conforto, pois ela revelara exemplo superior de resignação face à inominável tragédia que vitimava os seguidores do Mestre.

Incontinenti, viajou João ao lugar em que morava Nossa Senhora. 

Depois de uma demorada conversação, a santa mulher indicaria que ele chegasse às imediações do Mar da Galiléia, porquanto, nas suas margens acharia o motivo suficiente de recobrar as forças e a firmeza de tocar seus dias.

João aceitou o conselho. Buscou as praias daquele mar, onde permaneceu durante algum tempo. Relembrara ali os passeios felizes de vezes anteriores, absorto, porém, no transe da dor inominável. Certa tarde, preso à beleza das águas, se deixava inundar em gratas recordações quando avistou, deslizando na sua direção, sobre o espelho fino das ondas, o vulto magnânimo de Jesus. 

Nesse momento, um perfume de incenso raro imantava os ares, idêntico ao que experimentara próximo da cova em que antes depositaram o santo corpo do Nazareno, lá nas proximidades de Jerusalém.

Perante o suave fragor quis esmorecer, pungido sob o peso das emoções que lhe tomavam o íntimo, raro instante. Fechou os olhos em fervorosa contrição, e ouviu nos refolhos da alma lacerada, translúcida, a voz do Verbo de Deus:

– Estimado João, jamais queira imaginar que habito longínquas paragens, longe que fosse dos que amo. Sempre saiba, quando alguém me chamar com sinceridade, ao seu lado estarei, no universo dos verdadeiros sentimentos, acima de qualquer obstáculo, pois não há distância entre os que de verdade se amarem.

Desde esse dia, tocado nos eflúvios de revelação inesquecível, o apóstolo se entregou abençoado à força da mais sublime conformação, no ponto de transmitir à Humanidade os ensinos sagrados da missão que Deus lhe confiara. 

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Dina

Depois de servir a Labão tempo suficiente para receber em casamento suas duas filhas Lia e Raquel, Jacó decidiu retornar ao país de Canaã, onde deixara seu pai. 

Aproveitou uma ocasião de ausência do sogro, quando este saíra na tosquia dos carneiros, e fugiu em segredo, levando consigo tudo o de que se achou digno, a título de remuneração pelos vinte anos em que ali passara.

Três dias depois, ao saber da retirada intempestiva que custava a perda de filhas e netos, nada satisfeito, Labão reuniu seus irmãos e perseguiu Jacó sete dias, indo alcançá-lo no monte de Galaad. 

Antes, porém, fora avisado em sonho que deixasse Jacó e suas filhas continuarem a jornada, se despedindo deles com forçada amizade, após formalizar pacto no monte Galed, denominação dada por essa razão:

- Este monte, a partir de hoje, é testemunho entre nós dois - com isso, Jacó deu andamento à caravana, tangendo seus rebanhos até chegar à cidade de Salém, no país de Canaã, armando acampamento nas cercanias da povoação.

Logo adquiriu, junto aos filhos do governador Hamor, pela quantia de cem moedas, uma gleba de terra, instalando-se no novo país.

Alguns dias mais, e Dina, uma das suas filhas Jacó, ao sair na busca de fazer amizade com as mocinhas da localidade, viu-se notada por Siquém, filho de Hamor. 

Tomado de arrebatadora paixão, Siquém resolveu se apoderar da jovem, violentando-a de inopino, com isso precipitando os nefastos acontecimentos que daí sucederiam. 

Praticada a injúria, só então Siquém resolveu dirigir-se ao pai dizendo querer a moça para sua esposa.  

Na seqüência do incidente, o pai de Siquém buscou Jacó. Queria contemporizar as greves circunstâncias ocasionadas pelo filho. Sua proposta: que fizessem a aliança das tribos e pudessem entrelaçar as famílias, desde aquele que seria o primeiro dos casamentos entre elas.

Mal satisfeitos, os filhos de Jacó protestaram, no entanto, por conta de Siquém ser incircunciso e nisso não merecer casar com sua irmã. O motivo propiciou a que estabelecessem as bases de acordo onde todo varão daquele povo aceitasse o dever da circuncisão, a partir de Siquém, caído que andava de amores por Dina. 

E procederam segundo o estabelecido. 

No terceiro dia, contudo, deu-se terrível contradição. Simeão e Levi, filhos de Jacó e irmãos de Dina, traindo as bases do combinado, armando-se de espadas, marcharam contra Salém e eliminaram seus cidadãos ainda abatidos pelo ritual da circuncisão neles pouco antes executada.

Nas ações agressivas também eliminaram Hamor e seu filho Siquém, enquanto Dina, que fora residir na casa de Siquém, a trariam de volta. Despojaram corpos, saquearam a cidade e os campos, e apropriaram-se dos rebanhos e dos bens que encontraram pela frente. Nada restou incólume, nem crianças, ou mulheres, transformadas em prisioneiras e despojos de guerra, isto segundo o livro bíblico de Gênesis (34, 26-29), onde há registros do trágico drama.

A consciência alimentar

Na nossa civilização do lucro a qualquer preço, existe uma máquina, que funciona de carga toda, em busca e manutenção de consumidores alienados onde quer se achem, costume desenfreado que denominam marketing, ou a ciência do mercado.

Essa prática fria explode e rasga olhos em todo quadrante, por vezes não considerando valores comezinhos da ética mais elementar.

Vender, vender, vender, eis a palavra de ordem repetida até a exaustão, ou até doença e morte dos desavisados consumidores compulsivos, aqueles mesmos cidadãos comuns na procura dos seus inalienáveis direitos universais.

Quanto à alimentação cidadã, os danos crescem a cada ano por dentro do organismo do freguês e consequências danosas sem limites invadem o prazer da vida e entornam o bem estar, a saúde indispensável, e o estrago se completa no desaparecimento do bem maior, a existência.

Fala-se de boca cheia no conhecimento qual gênero de primeira necessidade, porque dele vem o discernimento, isto é, a capacidade administrativa de selecionar o que se precisa, no caso o alimento que nutrirá o corpo.

Escolher alimentos sadios, quais verduras sem agrotóxicos, enlatados sem aditivos químicos, cereais integrais, açúcar mascavo, ou demerara, frutas da estação, e usá-los nas proporções ideais a se sentir nutrido, numa digestão certa, como hábitos fundamentais de saúde em um corpo sempre disponível e livre de doenças, prática médica pessoal e preventiva, ausente dos atropelos da obesidade, da diabete e da hipertensão, males crônicos dos países consumistas.

Portanto, inúmeros achaques físicos e psíquicos seriam abafados logo no nascedouro quando adotados mínimos cuidados alimentares, simples e corretos, enquanto os estudos desenvolvem novas orientações saneadoras, em vigilância aos excessos da fome comercial, que avassala os meios de comunicação em forma de publicidade enganadora.

A consciência alimentar, pois, minimizará muitas dores nos que a adotam por método seletivo qual norma de boa conduta pessoal e maior sabedoria.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

A estação das chuvas

Quando os seios das nuvens se doam aos lábios do chão e mitigam-lhe a secura que existia, é tempo de agradecer. O sertão vira um jardim só; correm riachos e rios; vida que volta na brisa leve das tardes ensolaradas, agradáveis.

Felizes são os que conhecem as plagas sertanejas no tempo de invernada - época das chuvas regulares. Toda energia guardada pelas sementes adormecidas explode como quentura de fêmea jovem no cio, verdejando toda a mata - revestindo de veludo cor de musgo a garrancheira informe, como se acordada num susto.

Até o gado muda de comportamento, nos pastos ou em meio aos currais enlameados que rebrilham metálicos, mistura matinal de lama e bosta, de cheiro característico e forte. O leite espumejante nas vasilhas de zinco ainda reflete os pingos de orvalho, que caem do céu carregado de nuvens escuras.

 - Viva o sertão! Viva Deus, o autor de tudo! - hora solene de agradecer.

 No entanto, mostrar apenas estas fotografias da beleza de um mundo alegre não define com exatidão a realidade dos que vivem muitos dramas pouco conhecidos. Os preços, por exemplo, dos gêneros da agricultura, frutos difíceis das mãos calosas do caboclo, aviltam qualquer humana atividade. O valor do trabalho nordestino vem sendo espoliado, tanto nos baixos salários que sofrem, quanto nos ganhos de produção.

Conceitos de felicidade variam de pessoa a pessoa. Somos seres econômicos, apesar de também sociais e espirituais. Temos fome. E o matuto sabe que jamais encontrará noutros lugares o contentamento que deixou distante, no torrão natal. Nossa música fala disto com inigualável propriedade; quem ouve A triste partida (obra prima de Patativa do Assaré) pode bem se recordar.

A síntese da seca é o retirante, que nos invernos não teve justiça no preço do que plantou e colheu; não podemos fugir desse testemunho. Os homens públicos devem, por força da obrigação, assumir a cumplicidade moral desta culpa secular. 

Enquanto isso, nas cidades, acrílicos chamativos e sons estridentes mantêm a raça grudada nos apelos coloridos da ilusão totalizante. Nossa civilização deverá ser repensada pelas próximas gerações, para que se esquive do fim ignóbil já decantado por profetas antigos e atuais. A indústria do supérfluo mata mais que a da seca.

Que bom o retorno de uma temporada de chuvas regulares (chuvas de verão nesta área geográfica, segundo os livros) ao interior do Nordeste! Em tudo volta a boa paz, a beleza original. O Cariri friorento, azulado, com névoa encobrindo as abas da serra, quais mechas desfiadas de algodão, lembra que a vida se alimenta de agricultura e trabalho.

Melhor reconhecimento seria impossível tivéssemos equidade nas coisas do campo, das cidades, e a satisfação estaria completa, nas épocas sadias.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Os versos

Minha infância depois dos cinco anos vivia em casa ampla onde morávamos, na Rua Padre Ibiapina, bairro Pinto Madeira, em Crato, vizinha a serraria de meu pai e de um tio, irmão de minha mãe, Quinco Monteiro. Na área em frente daquele sobrado de dois pavimentos construído pelo dentista Pergentino Silva na década de 40, empilhavam carradas de toros de cedro acinzentados do barro das margens do rio São Francisco, de onde procediam. Daí, demoravam utilizar em portas, janelas e móveis, confeccionadas por exímios marceneiros e carpinteiros.

Meus dois irmãos mais velhos, Everardo e Lydia, frequentavam o grupo escolar no turno da manhã, enquanto eu ficava no período a brincar no terreiro com os meninos da rua, ou vendendo a lenha, que sobrava do sarrafo das madeiras, utilizada em fogões domésticos anteriores aos de gás butano de hoje. 
À tarde, seria minha vez de ir à escola, o Grupo Dom Quintino, no mesmo quarteirão, esquina da Rua São Francisco com a Monsenhor Esmeraldo.

No intervalo do trabalho, entre onze e uma hora da tarde, alguns dos operários, que procediam, na maioria, de Juazeiro do Norte, preparavam a refeição em cozinha improvisada num dos cantos da serraria. Alimentados, buscavam lugares mais amenos debaixo dos galpões para ouvir a leitura de folhetos de literatura de cordel que compravam na feira semanal.

Reservavam emoções especiais a esses momentos, mistura de mágica com recantos agradáveis de países distantes, aventuras em viagens fantásticas, batalhas de mouros e cristãos, príncipes, princesas, reinados esplendorosos, animais diferentes, bravatas, desafios, sonhos. Eu, ao meu turno, terminava rápido minha refeição já com endereço certo de ficar junto daquela confraria dos apreciadores atenciosos dos trechos lidos pelos operários. Acabou sendo esse o meu primeiro contato com a literatura. Eles denominavam versos aqueles livretos populares, nome genérico destinado a cada um, sem exceção.

O interesse de menino que demonstrava pelos cordéis me habilitava recolhê-los ao final quando se completava a leitura e reiniciavam a faina do trabalho. Com esses versos formaria bela coleção que guardava na gaveta da mesa principal da nossa casa, lugar mais seguro que encontrara, apenas por mim utilizada e fora da atenção das outras pessoas. Ocorria, raras vezes, no entanto, dos operários pedirem que trouxesse de volta para releitura algum dos volumes.

Passadas décadas, ainda me recordo o título de vários daqueles livretos que conheci na infância: Romance do pavão misterioso, Juvenal e o dragão, A triste partida (que chamavam de O verso da seca, da autoria de Patativa do Assaré), A chegada de Lampião no Inferno, A peleja de Zé Pretinho com o Cego Aderaldo, Aladim e a lâmpada misteriosa, Proezas de João Grilo, História de Roberto do Diabo, História do valente sertanejo Zé Garcia, O prêmio da inocência, A bela adormecida no bosque, A batalha de Oliveiros e Ferrabrás, A força do amor – Alonso e Marina, O soldado jogador, A vida de Cancão de Fogo e seu testamento, A prisão de Oliveiros, A filha do pescador, Os doze pares de França, dentre outros.

O mistério que existe nos livros eu descobri, pois, sua existência nesse tempo, através da literatura de cordel, este mundo encantado da tradição popular. 

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

O lobo e o cordeiro (La Fontaine)

Naquela manhã, os dois vieram bebe nas águas limpas de riacho cristalino que descia as encostas verdes da mata. Acima, na correnteza, um lobo faminto. Mais embaixo, o cordeiro solitário. Diante daquele encontro inesperado, enxergando água e alimento na mesma ocasião, o lobo resolve estabelecer conversação no mínimo ameaçadora para um cordeiro desgarrado de seu rebanho:

- Sim, senhor, amigo cordeiro. Veja só, eu bebendo água baldeada porque, além de gastar desse riacho, vossa excelência ainda enfia as patas desajeitadas pelas bordas e enlameia de barro a água que sobrará aos outros animais.

Desconfiado e antevendo risco próximo, o que lhe deixou bastante apreensivo, contudo coberto de razão, o cordeiro trata de argumentar:

- Como assim, seu lobo? Pois é daí que o riacho corre, e não daqui, pode ver. O senhor está do lado de cima, companheiro. E nem molhar os pés na água que bebe eu molhei.

- Se não foi hoje, foi ontem. Na semana passada. Quero é ter justificativa dos meus atos e pronto – refutou o lobo indócil.

Claro que o lobo sabia das reais circunstâncias, porém precisava impor qualquer motivo de brutalidade na cata do apreciado almoço daquele dia. Nisso, apelou a outras invenções: 

- Soube, no entanto, que, ano passado, o senhor, seu cordeiro, andou falando mal de mim pelas quebradas da floresta. Vários bichos trouxeram a desagradável notícia.

- Aconteceu não, seu lobo. Nascei foi este ano, sou novo de vida. Deve ter sido algum outro, não eu – nervoso o cordeiro respondeu.

- Ah, então foi isso... Acho que seu pai, um irmão seu, pessoa da família que enlameou minha história. Que quem disse só fala a verdade.

 De jeito arrogante, o lobo partiria em cima do cordeiro, e o resto da fábula todos conhecem, retratando o predomínio truculento do forte sobre o fraco, ação injusta dos tempos difíceis, quando inexistiam os direitos universais nas matas virgens, lá onde prevalecia a razão da força invés da força da razão.

(Foto: Jackson Bola Bantim).

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Natureza íntima

Numa de suas parábolas, o sábio hindu Ramakrishna conta que, certa vez, uma tigresa prenhe realizava caçada em busca de alimento, e corria atrás de rebanho de carneiros apavorados, quando, na plena função de sobrevivência, acabou por dar cria. No esforço de parir, misturado com a pressa da perseguição desarvorada, a fêmea não resistiu e morreu. Ao saltar, cairia exangue ao solo. 

Deixou vivo, entretanto, o filhote, de imediato cercado pelos ovinos, que se viram na condição de lhe oferecer elementos necessários à subsistência, consequência disso, o integraram ao rebanho, daí tocando adiante o tempo. 

Logo copiaria o felino os hábitos daqueles com quem convivia, fruto da observação e do sustento. Nutria-se de vegetais, balia feito borrego na face do perigo e dormia nos estábulos, em harmonia com parceiros amistosos, sem desconfiar do que ele fosse. 

Largos dias se passaram, quando, numa outra perseguição empreendida por tigre adulto que localizou os carneiros, este descobriu o tigre-carneiro, que viu ser observado pelo feroz predador. Admirado com a descoberta, a fera resolveu modificar a situação. 

Perseguiu o raro animal, o prendeu pela nuca, cercando-o de cuidados extremos, e buscou lhe indicar a condição de parente seu, levando-o às margens de um lago tranquilo para mostrar, no espelho da água, os traços da parecença entre eles dois.

- Veja, sua forma é semelhante à minha! Somos selvagens. Seja, por isso, um tigre igual a mim. Coma carne invés de folhas e palha! 

Desconfiado, todavia ciente dos argumentos, o tigre novo, criado pelos carneiros resolveu abandonar o rebanho amigo e se embrenhar nas matas, seguindo o tigre adulto.

A princípio, encontrou imensas dificuldades com a ração de carne que o outro apresentava das primeiras vezes, fazendo-o comer quase à força. Superados os esforços iniciais, sentiu prazer nas refeições sangradas, o que reforçou a condição que só naquela hora tinha a certeza de haver descoberto.

Mais algum tempo adiante, se adaptou aos valores originais da raça, cumprindo formalidades adormecidas do instinto, qual se antes nunca houvesse agindo de modo diferente.

Então, refeito do susto, o tigre mais velho a ele se dirigiu considerando:

- Agora você compreende que é semelhante a mim? Venha, siga-me nos caminhos da floresta.

...

Ao contar essa história, o místico indiano quis mostrar aos discípulos a importância da orientação a quem deseja descobrir o seu verdadeiro Eu, nada semelhante ao que imaginam os que vivem sob o domínio do ego no itinerário ascendente da busca espiritual.  

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Da solidão dos manequins

De carne e osso e nessas horas escutariam o som do motoqueiro que passeava um reboque de jingles e propagandas impertinentes de produtos agropecuários.

Na porta de loja da Dr. João Pessoa, eles dois, bisbilhoteiros extáticos de plantão, cinzas, fibras de vidro, olhos fixos, neutros, nus, ali expostos aos transeuntes indiferentes, cascas convexas de órbitas vazias em rostos magros, desenhos de candura nos moldes dos seios da mulher bonita que desfila saúde, a se notar nos reflexos dos carros parados junto da calçada, oito da manhã dessa quarta friorenta. 

No lado de lá da rua, o andar trôpego de veterano empresário com sacos plásticos nas mãos, filhos criados em dores de cabeça da testa azul de tinta nos cabelos brancos, ansiosa peleja de balancetes mensais. Vão adiante as pisadas e pernas interrogativas.

Gente, e eles usariam roupas jeans, demonstração de braguilhas fechadas e camisas abertas, gravata no pescoço; ela, barriguinha à mostra, busto grafite chuviscado de pingos de prata e um misto sensual nas fundas olheiras de véspera.

Pensassem, e perguntar-se-iam: - É disso que se vive, por trás de jaulas de vidro nas manhãs frias de junho? E o sonhar, de que tanto falam no rádio, que fosse isso talvez de caminhar a lugar algum, ou tropeçar no próprio passo, enquanto não chegava o destino linheiro? 

Sentir, e sentiriam as vistas grossas, vagarosas, da mocinha, no caixa do supermercado da frente, alimentadas no eco obtuso dos rocks nacionais barulhentos, a tocar do alto de postes, na avenida principal do comércio.

Pessoas-manequim, que vão e vêm; manequins-pessoa, que vêm e vão, pelas calçadas matinais.

De novo, apegados ao caminho da sorte, blusa ferrugem e sandálias de salto pendentes nos dedos, queixo espevitado, desfila umbigo, pernas, braços, tranças, a mocinha, dengosa, sorridente na brisa suave do estio.

Entediadas. Presenças. Dos manequins. Interrompem. A visão. Na porta da loja. Dois. Trastes estilizados. Que ofertam. Roupas. Iguais. 

Vidas neutras na forma de humanos seres esfregam o sol nos olhos-objeto, enquanto fregueses recém-despertos aguardam na fila e seus talões de liquidação dos estoques. 

Fora dali, no meio da rua, trânsito, barulho de pneus, frenagens, movimentos.

Houvesse coração no interior desses moldes e venderiam sentimentos nas demonstrações cordiais, no lugar de dominar as vitrines. Sós, no entanto, extáticos, pensativos (?), parecem caminhantes parados, no passo seguinte, imagens ligeiras das primeiras horas do dia. 

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

O curandeiro espanhol

Na visita que fez ao Ceará no período da Bienal do Livro de Fortaleza (agosto de 2004), durante palestra realizada no Salão de Atos da Universidade Regional do Cariri, em Crato, o escritor espanhol Manoel Rivas, a contar algumas histórias do povo catalão, descreveu tratamento exótico praticado por célebre curandeiro, o maior de todos que existiu nas terras da Espanha.

Para esse puçangueiro apenas se dirigiam aquelas pessoas às quais nenhuma esperança de cura jamais existiria. Os doentes desenganados buscavam o apreciado tratamento após percorrem infinitos lugares e, perdidos de todo, aportavam no terreiro do tal xamã, alimentando certeza de refazimento completo da saúde.

Manoel Rivas, então, descreveu os detalhes do processo adotado pelo homem, que vivia em sítio afastado. Recebido o doente, seria isolado em uma cabana de lugar ermo. Em noite escura, conduziam-no ao relento, tirados dele toda e quaisquer vestimentas e adereços, posto em completa nudez.

Nessa hora, o curandeiro lhe perguntava o nome, nome dos pais e de onde viera.

- Chamo-me Manolo – a título de um exemplo que seja, pois não recordo os nomes ditos por Rivas. – Meus pais se chamam Pablo e Maria. E venho de San Piedro de Majorca.

Ouvidas as respostas, o curandeiro de pronto reagia para dizer:

- Não, não, não! Seu nome é Marcelo. Seus pais são Fernando e Alda. E vem de Santana de la Concepción.

Surpreso, o paciente reagia, confirmando, outrossim, suas primeiras respostas. Ao que o curandeiro voltava a recusar as respostas, de novo trazendo os nomes que dissera para substituir os do paciente.

O debate acalorava a conversação, que se estendia noite adentro, durante longo tempo. Enquanto o paciente insistia em defender sua identidade, pais e lugar de origem, o xamã sustentava as modificações apresentadas, nisso consistindo a base do consagrado e infalível tratamento.

Horas e horas transcorridas naquilo de afirmar e negar, e substituir os dados levantados, reclamando a mudança da personalidade do paciente, exausto e abalado nas certezas iniciais trazidas consigo, este recuava esgotado para manter as velhas convicções diante do mal que o destruía. Aceitava com isso as mudanças propostas pelo curandeiro intransigente, abrindo mão definitiva dos valores que até ali o conduziram, qual nascido outra vez. Nesse momento, a doença deixava-o, sumidos os sintomas que antes demonstrasse. A força da saúde retornava intacta no outro que em si desenvolvera através método.

Por vezes, enfermos tanto se apegam aos achaques de males físicos que desenvolvem afetos, assumindo os resultados da doença. Na comunhão dos achaques, se sujeitam a promover dependências causadas de modo inconsciente. Assim, a eliminação acontece ao custo de eliminar a existência mental dos males. Eis qual interpreto o método do curandeiro, na palestra de Manoel Rivas quando esteve aqui conosco.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

A prova escita

Era a vez dos dois amigos padecerem sob a mira fulminante dos óculos do professor, que lhes aplicava o teste anual de Português, a peneira mais fina da escola. Quesitos selecionados da vastidão do idioma pátria administrariam a corrida de obstáculos que iria permitir acesso aos níveis seguintes. A derradeira questão premiaria os alunos com redação de tema livre, onde soltariam a criatividade e mostrariam o quanto desenvolveram da aplicação das normas ensinadas o ano todo.

Em carteiras próximas, eles dois apoiavam entre si o conhecimento adquirido, vencendo nisso, com relativa facilidade, a primeira parte da avaliação gramatical, tudo, porém, ainda de jeito precário, primário, qual dizia o próprio nome daquela parte dos estudos da época.

Daí, chegaram à segunda parte, à inevitável redação. Ficaria, sim, mais difícil trocar opiniões, partilhar as experiências das aulas através dos cochichos clandestinos de canto de sala.

Queimado o juízo na escolha do assunto desenvolvido, Salu agora amargurava na seleção dos vocábulos e na correção ortográfica, dada a pouca prática de escrever, enquanto o colega se desenvolvia bem na matéria. Assim, veio a dúvida principal quanto à escrita exata de termo que adotava. Pensa daqui e dali, quando notou a importância de só mais uma consulta o parceiro abençoado: 

- João, João, como escrevo passo? – cauteloso perguntou o amigo, olho na prova e olho no mestre, lá na frente sentado lendo jornal.

Nervoso e impaciente face aos desafios da prova, Salu pediu maiores detalhes do que o companheiro indagara:

- Passo, passo de caminhar... Ou paço municipal?

- Não, não, nem um, nem outro. Passo desses que avua – retrucou Salu, nisso movimentando os braços acima e abaixo, no gesto inconfundível de animais alados baterem asas.

Profundo silêncio preencheu o vazio no tanto suficiente até de escutar o ranger dos lápis a percorrer as folhas de prova dos estudantes.    

De lua de mel com a ilusão

Ditos populares economizam um tanto de fosfato às cabeças pensantes, no correr das literaturas, trazendo em linha reta o que, por vezes, custaria largos estudos, a sabedoria das palavras. Lembra o brocardo de que depois das tempestades vem a bonança. Tempestades que também demoram de sete, nove dias; de anos secos; anos de guerra, angústia; ditaduras, exceção, qual no caso brasileiro dos anos de chumbo, duas décadas e meia.

Em épocas escuras da história, momentos das guerras mundiais, depressões, desastres, estados de sítio, guerras civis, idade média, revoluções, êxodos, guerras frias, exílios, imperou o ânimo de que tudo passaria num piscar de olhos, e dias melhores viriam, para nunca mais faltar.

Isso marcou sobremaneira o século XX. Exemplos clássicos são enumerados, uns maiores, outros menores, que sobejam nos compêndios. Depressão de 29. Guerra Civil Espanhola. Guerra da Coréia. Do Vietnam. Seis Dias. Golfo. Afeganistão. Iraque. Etc. Cicatrizes vincam a geopolítica, no tropel da civilização sonhada, desde remotos antecedentes das cavernas, dose de interpretar o organismo afetado na proporção de progressos e conquistas

Quando se afigurou que o pêndulo permaneceria sem grandes balanços após a queda do Muro de Berlim, o povo árabe chegava trazendo a conta do desconforto nascido das divisões da Palestina, retorno do povo judeu dali ausente desde a última viagem.

Tais movimentos de tropas, canhões, navios, aviões, sacudiriam Europa, Ásia, Oceania, deixando de fora outras áreas, nesses cem anos de aventura explosiva. O continente africano, saco de pancadas dos brancos, quase nunca escapou aos imperialismos sucessivos. As Américas ensaiaram episódios armados de Cuba, Granada, Panamá, Malvinas, Nicarágua, Chile, Haiti e Colômbia, além de algumas escaramuças entre Peru e Equador e os focos revolucionários na Bolívia, e a Guerrilha do Araguaia, no Brasil, anos 70. Já em dias atuais, se nota o agravamento de ações táticas que põem nos lábios travos de apreensão, conquanto relativa calma existe nesse mundo de cá, mantido abaixo da linha extrema do subdesenvolvimento emergencial, custos altos de ginásticas e demagogia do atraso.

Houve, por isso, um tempo em que se pensou andar livre das outras indagações políticas do restante do globo, onde o fator da guerra restringir-se-ia aos quadros noticiários, e que só a paz reinaria, fruto das bonanças da civilização. Há que trabalhar, entretanto. Os homens antes de se julgar livres dos riscos desse tempo, invés de adormecer bem cedo nos cálidos braços da ilusão, que abram os olhos à consciência da responsabilidade social.  

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

A arguição

Durante os estudos, naquele ano, o professor de Ciências convocaria alguns alunos querendo na intenção de avaliar o resultado das aulas. Sentado quase entre os derradeiros da sala, Isidório fazia figa rezando de não ser chamado ao teste oral; deixaria à prova escrita revelar os conhecimentos era este o sonho que nutria todo tempo.

O professor convidou primeiro os da lá frente, gente sabida, lugar de sentarem os pequenos. Simpático, perguntava do ponto dos animais. Evitava guerra de nervos, pois lhe tratavam bem, posição agradável de tocar a profissão de mestre sala vários anos seguidos no mesmo colégio.

Nisso, numa passada de olhos, descobre a figura desconfiada de Isidório, e a ele dirige a próxima pergunta, nem difícil, nem fácil, ao nível ao estudante que mantinha distância dos outros, discreto e silencioso.

Isidório, de pé, mais morto do que vivo, alma gelada sob o clima invernoso da manhã, havia de corresponder aos objetivos da arguição, conquanto se os demais cumpriam o dever, também lembraria da resposta.

- Isidório, diga a classificação do sapo, esse bicho fácil dos brejos e açudes do sertão – indagou o professor.

O aluno recebeu satisfeito o quesito próprio a menores comentários. Logo tratou de achar a resposta, pensando voltar ao conforto antigo no território da longa sala:

- O sapo é um batráquio, professor.

Meio caminho andado, já via o outro lado do rio que atravessava rumo à liberdade. Isidório jamais imaginaria o resto da pergunta, na intenção do mestre de garantir a nota do pupilo, livrando-o da prova escrita.

- Sim, Isidório. Agora, justifique sua resposta. Por que o sapo é um batráquio?

Instante de tensão a todos envolveu, pois os colegas gostavam do companheiro. Ele reagiu, no entanto. Curvou o corpo à frente, dobrou os braços sobre o peito, no gesto que imitava o aspecto comum dos cururus, visando inteirar a resposta que dera antes:

- Ah, professor, por causa daquele jeitão que ele tem, assim, atarracado, igual a um batráquio – disse, fechando a questão.

domingo, 2 de fevereiro de 2014

A porta

Era uma vez um mestre carpina de nome Pedro, que vivia com sua família em pequena povoação do interior sertanejo. Tirava o sustento das artes da madeira, fabricando peças primorosas, admiradas por quem as conhecesse, fama que propiciava constantes trabalhos.

Envolto com carinho no trabalho, mestre Pedro demonstrava profundo interesse pelas coisas religiosas, praticando o bem, zelando pelos semelhantes, orientando, servindo e dando exemplos daquilo no que acreditava.

Certa feita, recebeu em sua morada ilustre caravana de pessoas querendo que ele fizesse a porta de templo em construção numa cidade distante. Essa peça deveria merecer cuidados especiais, porquanto a tal igreja significaria cumprimento de promessa ao santo padroeiro pela cura de uma das filhas de homem poderoso do outro lugar.

O artífice aceitou o pedido a ser feito em madeira de lei, e cumpriria com folga o projeto da porta trabalhada.

Alguns meses se passaram até localizar na mata um tronco indicado a confeccionar a encomenda. Movimentou pessoas e trouxe até a oficina cedro mogno linheiro e maciço. Outro tempo demorou serrando e planando as tábuas, quando, belo dia, iniciou a produção, juntando e colando as peças em um lastro precioso. 

Medidas exatas, acabamento esmerado, polimento e beleza... Restava cumprir o desenho que imaginara no rosto da madeira, fruto dos detalhes de um sonho do qual acordara no meio da noite cheio de júbilo, com o que só enriqueceria a forma do artefato encomendado.

A porta do céu possuirá características de semelhante perfeição, imaginavam extasiadas as pessoas, querendo ver de perto o feito magistral obtido pelo mestre na superfície da madeira.

A essa altura da soma dos dias, haviam transcorrido três anos. O profissional ultimava os apuros do trabalho, pousado sobre os joelhos e cotovelos, suado, afilando traços milimétricos, quase invisíveis, com estilete delicado, a sulcar as riscas das tábuas, quando, daí, resolveu erguer a peça de lado, pela primeira vez, a observar na posição vertical. 

No levantar a porta do chão, onde ficara tanto tempo, se abriu fenda nas proporções do tamanho da porta, cratera de fundura sem limites.

Diante daquilo e face ao inesperado, mestre Pedro entrou no espaço aberto, sumindo cavidade adentro, isto longe de alguém que presenciasse o acontecimento. 

Fim de tarde, e só então os familiares lhe notaram ausência quando vieram à oficina procurá-lo. Nada encontraram além da porta entalhada com esmero e as ferramentas deixadas pelo chão e o mais completo silêncio em volta. Nenhum sinal que fosse do artista, apesar de examinarem toda a redondeza e espalharem a notícia do misterioso desaparecimento.

Alguns contemporâneos do mestre Pedro quiseram admitir, no entanto, que, depois daquele dia, sempre nos inícios de noite, sobre a humilde oficina brilhava estrela de cintilações intensas, a clarear por bons momentos os céus da redondeza.

sábado, 1 de fevereiro de 2014

Gosto bom de autoestima

Há esse poder imenso de aceitar as contingências com respeito e disposição positiva, porta aberta de satisfação que vive aberta em sonhos, enquanto razão maior deixará de existir se não escolher a boa vontade o tempo todo. Segurar com firmeza o ponto de vista favorável à alegria, receber de bom grado acontecimentos e tratar de buscar elementos válidos à felicidade são, por si, instrumentos de criar razões de bem estar a todo o momento. 

Isto eis o que os mestres ensinam durante a missão grandiosa de otimismo e esperança, fé e oportunidade, justifica apego ao lado bom de tudo, por tudo. Eles ensinam e demonstram no que praticam, nos cadernos que escrevam, discursos que ofereçam, ações e exercícios que indicam. 

Ninguém que se preze joga fora a chance de ser feliz, sobretudo ao saber que pode usar alimentos certos de ter saúde e paz, porquanto essa alternativa de opção persiste ao nível das mãos, nas duas janelas da realidade do presente. 

Quais árvores frutíferas ao alvedrio das individualidades, sabores azedos, ou doces, assim ressurgem nas manhãs ao dispor das criaturas, origem e geração de escolha permanente do seres conscientes, os seres humanos.

Óculos de olhar o mundo significam as opções de ver cinzento, ou luminoso, que só dependerá da atitude individual. Outros jamais determinam a decisão derradeira dos fregueses do existir. A simplicidade mora na opção por vezes imprudentes de selecionar dos valores, porquanto elaboram, desse modo, os passos que darão e os lugares onde pisarão.

Bem óbvio isso tudo, no entanto sujeitam persistir ainda escolhas equivocadas, vistos desejos e preferências. Todavia a razão de toda seleção mora no íntimo do coração das mesmas criaturas. Daí o direito de usufruir daquilo que produzem, justiça plena da Natureza. Artífices da civilização, pessoas e grupos sociais abrem as estradas pelas quais gostam de andar, e quem faz o que quer está gozando, no dizer das gerações.