quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Um silêncio de solidão

No auge dessas angústias que ainda escorrem audaciosas pelas paredes japonesas, uns, impacientes, outros, os demais, ausentes, acham de localizar no painel a fama produzida em laboratório cinzento de horas que atormentam. No entanto as peças voaram para o céu em meio às nuvens, anjos de pedras e paus, chamas intensas dos astros que lhes serviam de referência, naquele mar de sombras que passaram apressadas.

Em poucos instantes ainda salvaram as vestes do silêncio, na solidão dos corações descompassados, moléculas grandes e amargos os sabores. Turmas se revezaram à porta do outro dia, a querer, de qualquer modo, chegar aos extremos do Infinito. Brincaram com fogos diversos; repassaram muitas vezes o roteiro das estações; e mergulharam admirados nas poças brilhantes, além de invadirem a cena, chamados às tontas pelo maestro do circo de horrores e navios abandonados nas praias. 

Nisto não há impossível, desde que o poder do sentimento ocupe a cabine de voo e desenvolva as habilidades para tornar real o pesadelo, e reconhecer o estado frágil das pretensas alegrias. Caminhar entre os bichos indiferentes ao dilúvio, qual um deles, nas lúcidas visões do panorama. Acordes avassalam horizontes, nas frestas da maré inevitável. 

Palavras bonitas e melodias que falam do equilíbrio perfeito da natureza, invés de competir no desastre, querem repassar notas em forma de contas matemáticas dos prejuízos; o interesse na sobrevivência, alimentado com as bondades do mundo. A troca da paz pela fumaça dos canhões, portanto, perde o viço e novas alternativas tendem a sumir, nos propósitos das criaturas de olhos banidos pela poluição radioativa despejada indiferente no oceano comum da Humanidade.

Ardentes esperanças, nessa aventura tecnológica, reavivam números e o sentido das vontades trouxe ao desespero. Pareceu invadir o território da agonia, nas ocorrências do mar revolto. Energia atômica para fins pacíficos de preços elevados em saúde, veneno que só restringe o espaço de locomoção e vida. E lembrar que humanos vêm brincando disso há quase um século, esquecidos e ensimesmados com o desejo ambicioso do progresso material.

Daí a solidão de falar desses pardais irreverentes circulando em volta dos monumentos, nos lugares ocupados da antiga floresta, insetos vagando na lama de ossos, crianças acordadas às pressas das suas lembranças inúteis. Espécie de impacto deixa todos abobalhados, surpresos com a fragilidade e o pouco caso que dedicaram à tão delicada existência.

(Foto: Jackson Bola Bantim).

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Acontecimentos que se avolumam

Cenas cotidianas de violência viraram rotina, desde as práticas diárias dos estados econômicos modernos, campeões na usura colonialista, percorrendo os dramas coletivos dos campos e cidades e a ganância do poder comercial nos mercados, até a antropofagia do turismo sexual, tudo que reclama espaço de reflexão urgente e medidas sérias. 


Entrementes, quais habitassem desertos de proporções mundiais, elites conquistaram os oásis férteis da riqueza e inúmeras populações apenas vagueiam estafadas caravanas de fantasmas nos areais da vastidão sem limite, onde existem grupos isolados que ainda possuem camelos, transportam provisões de alimento e água, dispõem da sombra das tendas nos entardeceres e no vento frio das noites mornas. Enquanto a outros nem isso lhes ameniza o tédio, arrastados feito reses perdidas rumo ao fim inevitável dos açougues.

Muitas cogitações cabem nesse quadro.

As cicatrizes reabertas nas gentes, que vêm do egoísmo inútil. A banda forra se deliciando na carne seca dos desavisados, que precisa parar de descer nas perversões da raça e descobrir o valor da solidariedade. 

A crise maior desse tempo é a falta de amor. Há que se amar muito para dominar a impura sede do lucro voraz, na falta de escrúpulo materializada nas leis de quem ocupa o comando, parecido bicho demente. Carecemos de refletir melhor as posições sociais, ao invés de defender bandeiras individuais corporativas.

O poder infinito do Amor permanece demonstrado na face de Jesus e dos grandes mestres. Durante a vida material firmam-se as bases da escola verdadeira, no sonho do espírito que nós somos, compreensão trazida à cultura e que transforma para melhor as metas das ações humanas. Amar, esse gesto definitivo, poder maior da Natureza. 

Gandhi afirmou que um vibrando para o bem vale milhões vibrando em sentido contrário. No definir objetivos de paz, edificamos a esperança de modos diferentes. Nas propostas da indigência física, existe um compromisso mais amplo dos seres perante a aquisição de outros bens mais elevados. Entretanto, na força desse gesto, reclamam as criaturas o pleno exercício da personalidade completa, somatório de mente e coração.  

Por isso, A resposta fica por conta de todos; primeiro, saber amar e, depois, amar muito. Só então se verá o fruto bom do resultado em tudo. Curar o mal na própria raiz, o que somos cada um de nós, omissos ou participantes desse novo projeto de Humanidade.            
(Foto: Jackson Bola Bantim). 

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Rainha depois de morta

Naquele tempo, as relações entre os reinos de Portugal e Castela seguiam-se tensas. Vale dizer que Portugal resultara do desmembramento de parte do reino de Castela, hoje Espanha, esta que muito e sempre quis reintegrá-lo, desde que houvesse chance.

Vieram nesse contexto as desconfianças profundas do soberano português, Afonso IV, por causa de tempestuoso romance do príncipe herdeiro Dom Pedro com Inês de Castro, linda jovem de família de Castela e dama de companhia da Princesa Constança, sendo que esta era a escolhida para noiva de Pedro.

Afonso olhava com profunda antipatia crescer as suas preocupações políticas entre os dois povos. A arrebatadora paixão do príncipe, no entanto, resultaria em alguns filhos do casal dos clandestinos amantes.

Em 1435, após Dom Pedro ficar viúvo de Constança, casar-se-ia às escondidas com Inês, segundo afirmaria em épocas posteriores, a justificar assim sua firme disposição de se manter sozinho no exercício do reinado, que chegou a ocupar com a morte do pai.

Por temer que seu filho conspirasse a favor da reintegração de Portugal a Castela, pela influência de Pérez de Castro, o pai da bela Inês, Dom Afonso organizou o episódio trágico perenizado por Luiz Vaz de Camões, no canto III de Os Lusíadas.

Numa ocasião em que o príncipe Pedro viajava para caçar longe das cercanias de Coimbra, onde vivia com Inês, Dom Afonso maquinou cruel sentença e invadiu o lar da jovem, prendendo-a e matando-a de modo torpe, além de lhe cortar o pescoço.



Tais contra Inês os brutos matadores, / No colo de alabastro, que sustinha / As obras com que Amor matou de amores / Aquele que despois a fez Rainha, / As espadas banhando e as brancas flores, / Que ela dos olhos seus regados tinha, / Se encarniçavam, fervidos e irosos, / No futuro castigo não cuidosos.


No regresso, dor imensa feriria D. Pedro ao descobrir o infausto crime. Em razão, a partir do homicídio, conflito sem precedentes desenrolaria nas relações entre ele e o pai.

Anos depois e Dom Pedro se tornaria o Rei de Portugal.

Das suas primeiras providências quando chegou ao poder foi ordenar a completa exumação dos restos mortais de Inês de Castro, desenterrando-lhe o cadáver e determinando sua coroação no trono de rainha, em meio às pompas do cerimonial palaciano. O espectro restaria exposto à reverência de toda a corte estupefata, rito acompanhado de perto pelos olhos frios do monarca endurecido.

Eis a história de quem depois de morta tornar-se-ia Rainha de Portugal.

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

A cruz de Marciana

Ímpetos apaixonados envolveriam os dois cativos de fazendas próximas, na região dos Inhamuns, época da escravidão, tempos seculares do Ciclo do Couro, época das charqueadas do Sertão cearense. 

Da tempestuosa emoção restaria lembrança apenas de um nome, o dela, Marciana. Dele nem isso  perpetuaram do amor sem dimensão que assinalara a história contada por Antônio Teodósio Nunes, filho daquelas bandas.

A força do afeto que arrebataria os instintos na coragem de ficarem juntos não despertou reação favorável do proprietário da escrava Marciana, sobretudo, que nos princípios ainda deixou conciliar as oportunidades dos encontros fortuitos dos namorados, apesar dos elevados custos de sofrer perseguições repetidas, no preço das surras e prisões.

O romance ganhou corpo e espaço na boca dos habitantes da redondeza. Uma lenda de paixão e desejo assim avolumava comentários das casas grandes às senzalas. 

Várias fugas se tornaram conhecidas, porquanto os amantes jamais recuaram no propósito de casar um dia, ânsia de quem descobre no outro espelho de si mesmo, busca voraz dos corações entrelaçados.

O jeito que achou o dono da escrava para impedir a delinquência foi pear-lhe os pés com tiras de couro cru aguçadas, qual também com os bichos fujões, ou gado ladrão que arromba cerca para mudar de pasto, nas desobediências insistentes.

Estados de prisioneira alimentaram na jovem as intenções de liberdade e afeto. Rendeu-se no fazer de conta, fim de revelar horas convenientes de fugir das vistas sagazes do feitor. Demonstrou arrependimento, tristeza, gesto meloso dos dissimulados, o quanto poder. Conseguiu fingir acomodação, e lá bela noite se jogou de impulso selvagem nas malhas da vontade e sumiu caatinga adentro, no escuro estrelejado, doces sonhos de escuridão profunda do amor clandestino. 

Dias e dias passaram quando ninguém sabia notícias da jovem negra, pois o silêncio venceu a fome dos boatos, só a desconfiança imensa.

No fim de tarde pouco além, horas mormacentas de verão cinza avermelhado, nuvem sinistra de urubus levantou no meio de manga distante, entremeio das duas propriedades. 

Dado instante adiantado de quase noite, deixaram os agregados de ver melhor à luz do dia seguinte; talvez alguma rês tresmalhada perdesse a vida na mata.

O que encontraram, todavia, na manhã alta, corpo desfigurado, maltratado pelos bichos, Marciana danificada a bico das aves de rapina, exposto à claridade no calor das inclemências. A perda feriu o povo de solidão, um morrer de amor aceito na carne da cativa. E puseram bem ali, no lugar do achado trágico, pequena cruz de madeira onde divisaram dela a fisionomia apaixonada pela vez derradeira. Àquele canto viriam peregrinos, munindo flores e velas, reverenciar a forma dorida que terminou com o drama da Julieta cabocla, em promessas, milagres, devoção.

Do episódio nasceria o nome do povoado que, em volta da cruz rendilharia casas, origem da localidade batizada hoje de Planalto de Marciana, município de Arneiroz, Sertão do Inhamuns, Ceará.

O valente Canguçu

Virara rotina no meio da garotada o jeito de ganhar ingresso para as sessões noturnas do Mundial Splendor Circus, que de grande mesmo só possuía no nome. A tarefa que cabia era ensacar os vira-latas da redondeza e levá-los, no silêncio das madrugadas, a uma das barracas atrás da empanada principal, discutir peso com o domador e transformar nas entradas da noite a mercadoria recolhida nas ruas e nos quintais.

Desse modo eles apuravam a ração do Rei dos Animais, leão posudo, atração maior dos espetáculos, a passar o tempo de olho nos bichos que avistasse por entre os ferros grossos da jaula, enquanto os esperava nas refeições. Cena ligeira, a população canina minguava dia a dia.

Os donos dos cachorros roubados, caso imaginassem o desaparecimento dos seus fieis amigos, quase nunca reclamavam deles desaparecerem na barriga do cruel leão africano.

Nesse ritmo as coisas transitavam na praça apinhada de gente cada sessão, a semana inteira, da segunda ao domingo. Até que chegou a vez do pequeno Canguçu, farejador inseparável das pertenças de João Boa Sina, caboclo da agricultura, ocupado nas lidas fora da cidade a dar de conta dos deveres. Família numerosa, renda aperreada, aonde fosse levava o cusco, de rabo feliz, os dois acima e abaixo, na vida escoteira dos longes e pertos distritos.

Com agrado, fácil, fácil, os moleques prenderam o inditoso cão conhecido pela valentia nos confrontos do subúrbio; nem nisso foi reconhecido pelos meninos ingratos, constantes admiradores seus. Aquele amigo da moçada rápido serviria no mercado das entradas, no escondido das tendas. Negociado, teria destino a goela do rei guloso.

Porém, um dia a roleta gira diferente. Quando jogado na jaula, Canguçu negaceou o corpo, num traço de mestre, e conseguiu escapar do primeiro bote da fera enjaulada. Passando por baixo das patas dianteiras do feroz, manobra mais de gato que de cachorro, num relâmpago se voltou por cima da crina dourada e abocanhou o pescoço peludo que ali aparecia, mordendo qual ferrão, com a força que grudou os dentes afiados nos debaixo da juba. 

Trincou com vontade titânica, e trancou seguro, no desespero daquela causa derradeira, talvez, sim, talvez, não escapasse. 

Vai lá, vem cá, o leão sacudindo a cabeçorra, pulava, virava, mexia, gemia, saracoteava, sem conseguir recompor a majestade selvagem ameaçada. As presas haviam ferido um nervo importante, nisso complicando o bem-estar do carnívoro. 

Urros, grunhidos, sopapos; algo fora do normal se estabeleceu na redondeza de sete léguas.

Os tratadores logo correram a chamar o proprietário do empreendimento, que jogava sinuca num bar das imediações. O movimento sacudiu de novidade o boteco, donde a turba também rumou na direção do circo, já reunindo bom número de curiosos naquela mistura de cachorro e leão.

Nada de solucionar a peleja, pois o gigante Golias parecia já querer amoquecar diante do pequeno David improvisado. As primeiras marcas de sangue respingavam o chão da gaiola. Restava pouca ou nenhuma alternativa ao manhoso felídeo. 

Aberta a grade pelo dono apreensivo, na mesma hora o animalzinho valente só fez mirar o lado de fora e chispar qual foguetão no meio dos que formaram a rumorosa torcida. Ganhou o mundo que nem bala, num risco só.

Depois daquela cena, os meninos perderiam a boquinha, pois o Rei dos Animais se enfastiou da carne canina a ponto de refugar até mesmo os cachorros que passassem longe, na parte externa do circo. Reagia intranquilo, rugindo, grunhindo, reclamando apreensivo quando ouvia um latido distante. 

Ainda durante algum tempo, os populares da pequena cidade lembravam com gosto a coragem de Canguçu, cão minúsculo que livrara a espécie das presas enormes do voraz inimigo público.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Raimundo de Oliveira Borges

Uma homenagem ao Dr. Borges, nos 60 anos do Instituto Cultural do Cariri.

Isso que dizem de ser a vida humana mera fagulha ao vento exige comprovação, sobretudo diante da existência deste amigo, Raimundo de Oliveira Borges, que ora demonstra de perto a experiência firme de viver durante cem anos uma idade plena de realizações. Ele, sim, pode falar do existir e contar da tradição e da peleja de três gerações sucessivas que testemunha com fidelidade e coragem.

Escritor emérito, publicou mais de uma dúzia de livros. Advogado e professor, marcou de jeito indelével a consciência das centenas de alunos, dentre os quais sou, com satisfação, um deles. Tribuno de rara qualidade, porfiou no júri, praticando fala rica, profícua, no êxito de momentosos processos. Líder comunitário, efetivou importantes funções, em Crato, havendo exercido a direção das Faculdades de Filosofia, de Direito e de Ciências Econômicas. Presidente do Instituto Cultural do Cariri, sobreviveu a nossa simpática academia de letras numa fase das mais dificultosas, quando ao seu lado estive. Se bem que cabe, ainda, considerar o seu desempenho virtuoso de pai extremado, fino de trato e humor, tranqüilo, de espírito desarmado, palestrante versado na melhor literatura, poeta dotado de sensibilidade, pessoa exemplar, afeita sob os princípios dignos e imprescindíveis da civilização que usinou durante todo tempo, conhecendo a história do povo, bem relacionado, cordial e valoroso paladino das causas essenciais, na prática política e nos penhores da liberdade consciente.  

Doutor Borges, por tudo isto e outros predicados, marca a sociedade cearense interiorana com personalidade ímpar de quem merece privar o convívio honrado e fértil dos justos. Elencar qualidades que lhe são de dever torna-se tarefa leve, aos moldes do estilo e da pena que maneja no exercício da escrita, por meio dos livros que subscreve, dotados de emoção, memórias produzidas no fogo da responsabilidade social que a isto se obrigou exercitar.

Eu, ainda menino, tomei conhecimento de seu talento através dos júris que, na década de 60, de comum, eram retransmitidos através dos microfones da Rádio Araripe de Crato. Admirado, ouvia seus discursos deveras impressionantes, tanto pela cultura vasta, quanto pela facilidade na argumentação, demonstrações de sapiência jurídica e ilustre universalidade. Fora eleito orador da sua turma de 1937, na Faculdade de Direito do Ceará, contemporâneo de figuras destacadas na vida pública posterior do nosso Estado.

Instalou-se em Crato desde 1942 e aqui até hoje permanece conquistando espaço próprio, ao lado da gente boa, ordeira e laboriosa deste lugar abençoado.

No dia 02 de julho do corrente ano de 2007, época exata do transcurso de um século de sua vida, o doutor Raimundo de Oliveira Borges se nos afigura querido em face de todos os que lhe privam da convivência, ele que representa, em breves traços, um desses personagens inesquecíveis e marcantes dos romances imortais, ricos dos atributos das almas vitoriosas.  

Algum tempo depois de escrevermos este texto, dia 27 de janeiro de 2010, Dr. Borges nos deixaria, marcando sua história com brio e dedicação às causas da Humanidade.

domingo, 20 de outubro de 2013

Tim Maia

Algumas lembranças permanecem grudadas na memória da gente livres de qualquer esforço. E quando essas lembranças vêm acompanhadas de emoções musicais, então passam a constituir um mesmo bloco naquilo que costumam chama de eu. Aonde as pessoas queiram ir, o tal meteoro de existência de si caminha nos trilhos da individualidade feito pedra formada nos idos de ficaram nela grudados.

Faço as cogitações no momento de escrever um pouco a propósito do cantor Tim Maia, intérprete da música brasileira que viveu nos Estados Unidos e trouxe ao Brasil o soul , gênero adotado na produção do seu primeiro disco, sucesso absoluto do ano de 1970 e marca definitiva da nossa geração.

Dente outras músicas imortalizadas no vozeirão típico do cantor estão Azul da cor do mar, Coroné Antônio Bento, Primavera (Vai chuva), Padre Cícero, Cristina, interpretações qualificadas pela musicalidade, ícones de beleza e sentimento.

Ele, Sebastião Rodrigues Maia, nascera no Rio de Janeiro em 28 de setembro de 1942. Iniciou caminhada artística na mesma fase de Jorge Ben e Roberto Carlos. Em 1959, viajaria aos Estados, onde aprimorou seu talento e cruzou difícil período de vida face envolvimento com drogas, motivo de prisão na justiça americana.

Ao regressar, Tim Maia conduziu carreira promissora, alçando altos voos na fama a ponto ser considerado entre os maiores intérpretes da MPB de todos os tempos.

Uma personalidade contraditória, hoje figura em livro (Vale tudo – O som e a fúria de Tim Maia, de Nélson Motta) que conta os detalhes de seus passos, inclusive através da religião ao conhecer a Cultura Racional. Enfrentaria problemas amorosos em diversos relacionamentos, dotado de gênio difícil, brigão e temperamental, deixando rastro de situações características de pessoa sensível e atormentada.

Dotado de saúde precária, atravessou complicações respiratórias, diabetes e a obesidade que lhe acompanharam de perto até 15 de março de 1998, instante de passar à Eternidade, às vésperas de inaugurar experiência política. Filiado ao PSB, preparava candidatura ao Senado, pelo Rio de Janeiro nas eleições de novembro daquele ano.

Graças a tecnologia da eletrônica, toda obra de Tim Maia e de tantos outros vence a mediocridade do ostracismo e chega inteira aos tempos atuais.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Indiferença

Algumas perguntas insistem destoar o coro dos contentes, nesse tempo de humanidade. Quanto custará o progresso material em termos de paz? Por que morrem tantos jovens, vítimas que são das drogas e da violência? Quais as razões de quantas mortes no trânsito, cinquenta por cento delas ocasionadas pelo uso das motos, transporte que avassala as ruas na pressa de resolver distâncias e afazeres? O que produz imensa corrupção invasora da sociedade, eleição após eleição na intenção de conduzir as instituições de modo justo? Como alimentar hum bilhão e cem milhões de pessoas que passam fome na face do Planeta, enquanto o desperdício representa metade dos alimentos que são produzidos?

A própria sobrevivência de todos reclama tais respostas o quanto antes, a fim de conter indiferença agressiva que parece dominar lideranças e meios de comunicação. À primeira vista, isso deixa margem a pensamentos de que interessaria manter o estado de coisas reinante, pois mesmo que haja denúncias ostensivas das aberrações e dos desencontros, o poder das massas não oferece alternativas e soluções adequadas e proporcionais. Aumentam estatísticas, prova diária do que dizemos.

As marcas andam por todo canto, sobretudo no seio das famílias menos de menor poder aquisitivo, relação direta com o sofrimento da juventude atual. Dores atrozes sacodem as estruturas dos sentimentos na forma das notícias lançadas aos quatro ventos, espécies de banda podre que alimentam o instinto sadomasoquista dos desavisados, e matéria prima de falsas seguranças.  Não é comigo, viva eu por mais um dia.

Entretanto ninguém, de sã consciência, esconderá as deficiências apontadas nos sintomas perversos que atestam o grau inferior da raça a que todos fazemos parte. Em momento algum existirá razões de esconder, pois até as pedras gritarão, nos dizeres bíblicos.

Avestruzes de cabeças enfiadas no areal desses desertos dagora passeiam bilhões de estrangeiros nesse chão das vaidades em trajes de domingo, indicação de que o drama coletivo virou assunto de terceira página, tese esta sem qualquer sustentação diante dos tribunais da Eternidade. Somos uma única família face à natureza, enquanto o egoísmo atrasado só anestesia os sentimentos positivos que demoram chegar.

Nada mais religioso, pois, do que trabalhar no sentido de reunir esforços e oferecer respostas corretas e urgentes às causas que dão origem a tamanha agrura, eis o dever deste momento de clamor dos anônimos que padecem debaixo da apatia, outra face da ausência do Amor nos corações.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Os Anicetos

Manifestações culturais têm na música sua maior expressão, repassando desde as mais priscas origens, sentimentos que nos chegam intactos pela magia do som. Os povos letrados inventaram as cifras, para transmitir, através da História, suas produções, nas partituras de sete notas, visando reanimação posterior.

Entretanto quem codifica a trilha sonora das culturas simples, pobres, sem códigos gráficos? Como saber o que tocaram e cantaram os ancestrais, à margem da caligrafia e do papel? Como reviver seus segredos e descobertas musicais?


A resposta vem sendo dada pelo homem rude, por intermédio da tradição oral dos períodos remotos, nos instrumentos, ritmos e melodias, qualidades recriadas geração a geração, tais fios invisíveis de ordem subjacente, que dispõe de uma ciência (o folclore) a estudá-la, pesquisando heranças de cada grupo na estampa cronológica da cultura.

No Cariri cearense, vivemos juntos de amplo patrimônio dos valores antigos, desde rico passado da origem indígena, nos troncos inca-tupis, até a robusta bagagem do imigrante europeu trazida pelo ciclo do couro, no século XVIII. O folclorista J. de Figueiredo Filho foi quem mais se interessou pelos estudos desse acervo, auxiliando inclusive na criação do Instituto Cultural do Cariri e divulgando ao resto do País os cabaçais dos Irmãos Aniceto.

Esse conjunto de couro apresenta cinco hábeis instrumentistas: catargo (ou casal de pratos), caixa, zabumba e dois pífaros (pifes, ou pífanos), peças tocadas pelos músicos de uma mesma família, irmãos e primos, Cícero, Britinho, João, Raimundo e Antônio, que vivem da agricultura sem terra, plantando nas encostas e brejos próximo de onde moram, no bairro da Batateira, em Crato.

Segundo informações de Antônio, um dos pifeiros, o grupo remonta o tempo de seus avós, que ensinavam aos filhos desde os ritmos às danças, quais baião, maneiro-pau e reisado, passando pelos rojões, galopes e marchas. 

Os títulos das peças falam bem dos conteúdos pitorescos da peças musicais: Marcha rebatida, ... de chegada, ... de estrada, Solta, Manhoso, Pé duro, O cachorro, O caçador e a onça, Baião gigante (A briga do galo), A dança dos facões (representando as lutas de espada dos antigos), O tiramento do marimbondo, O casamento da cauã com o gavião, O casamento dos sapos (quando é para começar o inverno), O caboré, O camaleão, para citar algumas, em acordes diferentes, e muitas mais, gravadas apenas na memória, sem o adjutório dos livros, depois trazidas de ouvido, portando com sacrifício e apuro. 

Eles vêm divulgando, há oito décadas, esse substrato cultural das populações humildes do sopé da Chapada do Araripe, pelo Brasil afora, desde Porto Alegre (onde se apresentaram na década de 50, pela primeira vez fora da Região), até Brasília, Rio de Janeiro, Recife, Fortaleza, cidades do interior do Estado, em muitas das quais por várias vezes, chegando também na Europa, em viagem a Portugal. Isto sem avaliar os trabalhos cotidianos nas festas comunitárias, exposições, feiras, folguedos religiosos, forrós e festas, despejando alegria na alma das pessoas.

Alguns dos componentes fabricam e vendem os instrumentos que executam, sobretudo o pife, feito de taboca (bambu) vazada com furos, modelo da primitiva flauta indígena.

Numa reverência que bem merecem os Anicetos, artistas natos, provindos de lares humildes, heróis sem maiores reconhecimentos, porém que persistem na democracia dos sonhos, na arte verdadeira.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Terra Ardente

Alguns dias de junho de 1977 e escrevi história de ficção ambientada no Cariri, de nome Naipes e gatilhos, título de argumento envolvendo costumes e tradições regionais do Nordeste, desenvolvido em roteiro cinematográfico, com os detalhes de filmagem. 

Sob a produção de Valter Leite; minha direção e fotografia de cena; fotografia de Luiz José dos Santos, reunimos um grupo formado por Jackson Bola Bantim (assistente de direção), José Roberto França (assistente de produção), Isabelisa Cordeiro (continuísta) e Célia Teles (figurinista). No elenco, pessoas da Região, dentre elas Osvaldo e Soraia Gomes, Fernando Antônio de Oliveira (ator principal), Tandô, Cabo Toureiro, Irmãos Aniceto e Marli Pladema, esta de Niterói, Rio de Janeiro, que passava pelo Cariri, e que Célia conhecera em Recife, também amadora de cinema e exerceu o papel de atriz principal, dentre vários nomes que trabalharam no projeto. Iniciamos as filmagens que aconteceram nos municípios de Crato, Juazeiro do Norte, Barbalha e Várzea Alegre. As ambientações escolhidas para as cenas eram das mais admiráveis, edificações de fazendas e vilas, tudo sob prévios estudos, lugares tradicionais e característicos da nossa arquitetura original.

O foco da história envolvia prisão da jovem esposa de um fazendeiro dos Inhamuns, por parte de proprietário de terras no Cariri, que por razões de afetos pessoais a mantinha em cárcere privado. O enredo levava ao tal coronel, quando se dava confronto envolvendo os agregados da fazenda, aliados ao mocinho, que venceria o embate entre os dois grupos, após sangrenta batalha. Em meio a tais questões, se apresentavam considerações críticas a propósito da posse da terra e aspectos morais das circunstâncias históricas. 

Outros lances descritivos da fotografia mostravam as belezas da paisagem regional, danças e cores de grupos folclóricos, as várias fases do beneficiamento da cana-de-açúcar nos engenhos, etc, dando ao filme visões típicas caririenses. Enquanto isso, o fundo musical traria autores locais, a exemplo de Abidoral Jamacaru. 

No desenrolar das cenas, cego cantaria versos escritos por Elói Teles narrando a mesma história do filme, o que depois viraria um folheto de cordel, independente da conclusão do filme, suspensa na segunda metade da produção e que nunca aconteceu.

Dificuldades surgidas no decorrer dos trabalhos impediram a sua montagem final que a mim caberia. Atravessei fase crítica na saúde e, a contragosto, deixei de lado aquele que seria o primeiro filme média metragem todo ele realizado no Cariri.

A propósito, pouco, ou quase nada, sobrou da iniciativa além de lembranças vagas nas pessoas que viveram de perto a experiência. Há pedaços esparsos do copião em super8 que ainda subsistem nalgumas mãos de apreciadores do cinema regional. Pouco tempo antes de falecer em Crato, João Batista Filgueira me forneceu uma cópia do roteiro original, que nem isso mais eu guardara, e hoje existe nos meus arquivos.

(Foto: Jackson Bola Bantim).

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Instinto e consciência

Nesse tempo já saturado de alimentação artificial, em que adotam confundir o sistema original dos corpos com engrenagens das máquinas e dos motores, ocasionando resultados indesejáveis à saúde, causa de excessos, produzindo obesidade, diabetes, males cardíacos, degeneração precoce, etc., etc., quando o belo instrumento de servir a vida inteira dura tão só poucas décadas, juventude perdida nos balcões e bares, isso traz à lembrança dois temas.

Primeiro, a definição dos filósofos gregos quando classificaram o ser humano por bípede sem penas (segundo Platão), ave graúda, montada nos dois pés, e destituída de plumagem, descrição aceita na Antiguidade Clássica.

Em contrapartida, naquela época mesma, Diógenes ridicularizaria o conceito. Depois de depenar um galo, o soltaria em praça pública dizendo: - Eis aqui o homem de Platão!

Segundo tema, o conto chinês do zen-budismo que fala de um pássaro de duas cabeças. Desde cedo, a cabeça da direita demonstrava maior poder de encontrar os alimentos, e dominava todo tempo a satisfação do único corpo, interesseira e agressiva que era. Enquanto a outra cabeça, lenta no raciocínio e nos reflexos, perdia as chances, ainda que quisesse, de desfrutar prazeres do bico.

Viviam competindo entre si pelo direito de comer. Quase nunca a cabeça da esquerda levava a melhor. Insatisfeita no jogo, a perdedora descobriu onde havia saborosa planta, todavia ofensiva à saúde. Sem medir consequências, daí conduziu a outra cabeça a experimentar do fruto proibido, no que se fartou intoxicando o corpo e as duas cabeças. Naquilo, imaginara vencer a concorrência por meio da avidez da adversária, esquecendo, contudo, serem comuns os frutos da indigestão que eliminou também a si própria.

No procedimento equivocado desapareceriam as duas cabeças, sobrando, ao final, nem vencido nem vencedor. Algo semelhante à sede das corporações mercantis de hoje, que acarreta toxinas em doses cavalares oferecida livremente nas lojas das tentações gastronômicas. Num lado, o instinto do prazer desmedido. No outro, a inabilidade das consciências ainda inocentes.  

(Foto: Jackson Bola Bantim).

domingo, 13 de outubro de 2013

Um oásis no Sertão

Na parte sul do Estado do Ceará, fronteira com Pernambuco, Paraíba e Piauí, Nordeste do Brasil, situa-se região de características geográficas e culturais peculiares, formada sob a influência típica da Chapada do Araripe (maciço que ocupa uma área de 600.000ha, sendo 180 km de comprimento e largura entre 20 e 50 km, numa altitude de até 900m, localizada a 400km de Recife, Pernambuco, e a 450km de Fortaleza, capital do Estado, linha reta), composto de solos, clima e vegetação diferentes do semi-árido, vindo, em conseqüência, de merecer uma classificação particular sob a denominação de Região do Cariri.

Para se ter noção clara do que seja esta parte do Mundo, indicam-se necessários outros aspectos da Chapada do Araripe, de onde se vislumbra belo e espaçoso vale, vertedouro dos seis rios originários de suas encostas (Batateiras, Cariús, Grangeiro, Latão, Miranda e Salamanca), que têm cheias no período chuvoso (de dezembro a maio).  No século XIX, aqui estiverem os pesquisadores europeus Agassiz e Gardner, destacando a fertilidade de suas terras e registrando a riqueza de sua fauna e flora.  As fontes de água pura que jorram em muitas localidades, calculadas em 265, bem caracterizam a riqueza hídrica regional.

São os seguintes municípios cearenses que formam a Região do Cariri: Abaiara, Altaneira, Araripe, Assaré, Aurora, Barbalha, Barro, Brejo Santo, Campos Sales, Caririaçu, Crato, Farias Brito, Granjeiro, Jardim, Jati, Juazeiro do Norte, Mauriti, Milagres, Missão Velha, Nova Olinda, Porteiras e Santana do Cariri.

Dentre esses, são principais as cidades de Juazeiro do Norte e Crato, a primeira pela importância comercial de ser a sede do culto popular à personalidade do sacerdote católico Cícero Romão Batista (1844-1934), para onde afluem milhares de fiéis dos outros estados nordestinos, em quatro datas comemorativas anuais, e o segundo pelo valor histórico e educacional, dos mais antigos pólos da colonização, iniciada no século XVIII, sob a égide da Coroa Portuguesa, através de expedições provenientes dos estados da Bahia, de Alagoas e Sergipe. Dada sua posição estratégica, Crato teve atuação marcante nas lutas libertárias nacionais.  No mês de julho, o município realizada uma mostra agropecuária de animais e produtos derivados que chega a reunir centenas de milhares de visitantes.   No município de Santana do Cariri, está situado um dos mais ricos sítios fossilíferos do Planeta, donde são retiradas pedras de peixe relativas à Formação Santana, vinculada à Bacia Sedimentar do Araripe.

A força da Natureza e o desenvolvimento cultural credenciam o Cariri para o Turismo, propiciando clima agradável durante todo ano, tendo folclore variado, com ritmos, danças e folguedos próprios, além de rico artesanato em couro, barro, madeira e linhas. Sua herança histórica vem sendo registrada em publicações regionais, e sua beleza cantada em prosa e verso, nas letras de música e lendas características, evidenciando, desta forma, identidade cultural e espaço artístico digno de estudos.

Calculados em números próximos, a região deve abrigar em torno de 1.300.000 habitantes, concentrados, sobretudo, no triângulo formado pelas cidades de Crato, Juazeiro do Norte e Barbalha, epicentro sócio-econômico desse rico oásis do Sertão brasileiro.

(Foto: Jackson Bola Bantim).

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

O instante mágico da fotografia

Nalguns sonhos, histórias que, por vezes, se repetem, encontro o objeto que quero fotografar, mas quando aciono o disparador ele trava, cortina emperrada; insisto, sustento a pressão sobre o dispositivo, e só resta impossibilidade. 

Assim nas tantas ocasiões da existência. Tudo converge a realizações, no entanto algo emperraria e nada acontece. 


O equipamento (os trens de fazer retrato) significa apenas as chances do fotógrafo; boa câmera, lente ideal, velocidade, abertura, foco. No outro lado, a vida; luz, beleza, significados, oportunidades, expectativas. Contudo, neste universo infinito entre fotógrafo, máquina e realidade, há que surgir algo novo; o parto do instante; o romper da placenta; a existência inexistente do ser fotográfico, na tela dos resultados; nos filhos da imagem.

A relação entre máquina, homem e vida definira o rosto da fotografia em pedaços recortados, frações que desapareceriam soltas no que passou. Daí o valor inestimável da mecânica fotográfica, que mudou o rumo da história humana. Saber que houve um passado por meio de imagens gravadas atualiza o sentido de responsabilidade, na consciência dos seres. Provar a si mesmo que possui história de sua consciência, a resultante dos dias que vão embora, em forma de documentos da memória material, e impor respeito ao que faz do que permitiram fazer de nós.

Por isso, a força prudente de gravar, na luz do presente, as marcas do que se foi e iluminar os extremos do real, abrir ao infinito a potencialidade de obter respostas de que existirá para sempre aquilo que sairia de cena. Bem nesse ponto, o poder de criação da Arte. 

Através de conter, pois, o fluxo incontrolável do tempo há um pedacinho infinitesimal do passado guardado, sua claridade, seus elementos de saudade, de amizade, sonhos, esperanças, felicidade.

Quando nos sonhos insistiria querer plasmar o momento por meio da mágica fotográfica, e a lentidão do equipamento, ou a dureza do disparador, angustia em não acontecer, representa a fronteira do nada absoluto na hora da resistência em permanecer, quando arrasta ao futuro, nuvens que o vento dissolve pelo ar da existência.

O fotógrafo, qual profeta do tempo que tudo tritura, fixa na eternidade o efêmero, palavra derradeira dos sonhos em que a câmera aceita conspirar e contêm o desaparecimento dos corpos nos turbilhões da Luz.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Rômulo Serrano

Chegara no intuito de trabalhar na Agência Centro-Salvador do Banco do Brasil, à Avenida Estados Unidos, no Comércio, em frente da Associação Comercial da Bahia, lá onde, nos idos do Século XIX, Castro Alves declamara seus poemas em saraus dos mais concorridos. O banco, edifício novo, prédio de nove andares, construção que abrigava por volta de 750 funcionários. Trabalhava no Cadastro, no terceiro andar. Logo vizinho ao meu birô se instava Rômulo Correa Serrano, dos primeiros amigos que conquistei na Boa Terra.

Serrano detinha personalidade carismática, bem humorada, a alegria em forma de gente. Hábil na pintura e no desenho, neutralizava na arte a aridez da vida bancária. Raro o dia em que não nos trouxesse uma história engraçada inédita, expectativa dos colegas do Setor, onde formávamos verdadeira família. Os almoços do intervalo do expediente realizávamos no 9.º andar, o restaurante da agência, sempre em companhia daqueles mesmos com quem trabalhávamos a semana toda.


Aos finais de semana, sábado cedo, eu que vivia longe de casa, em um pensionato na Barra, pegava o ônibus do Rio Vermelho e, à Rua Itabuna, Parque Cruz Aguiar, reencontrava Rômulo Serrano, em busca daqueles amigos, inclusive sua esposa, Dona Lucíola, filha de cearenses, que cedo chegaram a Salvador e permaneceram. Conversávamos a respeito de literatura, arte e culinária. Nesse tempo, me alimentava de macrobiótica, dieta oriental que também adotava Dona Lucíola e alguns dos quatro filhos do casal.

Passeávamos pelo bairro, ainda relativamente calmo e dotado de praias bonitas, caracterizadas por rochedos e casas antigas, paisagens prediletas de Rômulo. Apreciador de vinhos, ao regressar e antes do almoço, tratava de produzir as marinhas, tarefa que motivava em mim a satisfação de observá-lo, diante da maestria dos traços com que exercitava exímio talento, respeitado no meio artístico baiano, cheios de tantos valores culturais.


Outro segmento de suas produções eram os retratos. Em fase difícil da vida, face grave enfermidade que venceu após meses e meses em tratamento, prometera, a cada Dia de São Francisco, pintar uma tela com a figura do santo, o que cumpria na risca.


Há poucos dias, através de notícias de um caririense que mora em Salvador, Guarani Araripe, arquiteto, poeta e amigo da família de Rômulo Serrano, vim saber que ele deixara este mundo cerca de 12 anos atrás.



Nos meus planos de viajar mantinha constante a vontade de revisitar a Bahia, pouso de sete longos anos de minha vida, e localizar os grandes amigos que lá deixei, alguns, no entanto, agora na lembrança e na imaginação.

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Certezas

Tempo isso já lhe ensinaram nas escolas, é pura prioridade.

Antes, gostava de livros. Hoje, gosto de ler. Às vezes, chegam às minhas mãos livros que lembram pessoas. Esses demoram pouco comigo, não me pertencem.

A tal distância infinita entre as pessoas se parece com o texto de Deus e do avião, de longe fica pequeno; de perto, bem maior. Quanto de pouca comunicação há entre pessoas; vazios e impossibilidades; nuvens e oceanos...

De comum, a linguagem adotada, invés de reunir, chega a distanciar, pelas próprias limitações do processo da comunicação, cavando esconderijos profundos e trincheiras enlameadas em que chafurdam criaturas amarguradas e tristes; ou flores frágeis de doces perfumes.

O ser que somos nem sempre mostra aquela cara que a gente imaginava... Somos, nalgumas ocasiões, meras sombras de nós mesmos; espectros ambulantes perdidos nas estradas da existência.

Isso de identificação soma quando a gente se sente sozinho. Saímos a bater nas portas das vidas aqui de perto, a procura que nos abrirá os olhos da mente a as fibras de um coração a vislumbrar paisagens novas.

O tal vazio das horas difíceis significaria isso, a impressão de que um deus dormiu, e a gente esperaria que ele acordasse, quando jamais a  Verdade esconderá a face diante das horas, no íntimo, o tempo todo.

Instinto da religiosidade nada mais é do que despertar de si em Si, alimento das águas claras de lagos limpos.

Sei, não. Mas parece que perdemos o contato com o outro lado da gente mesma, meros joguetes de sorte criada pela sonhada na civilização da história. Conquanto busquemos acertar, perdemos, horas algumas, o alvo objetivo de querer chegar; e deslizamos numa pista de espumas e energias, sons e imagens, à velocidade dos tempos.

Saber da presença das vidas além da muralha dessa caverna traz gosto de seguir arranhando as pedras e nutrindo esperanças, motivos suficientes a persistir, ainda enquanto o calor e a secura indiquem solidão, pois moram luzes lá nos inícios de novas alvoradas.

(Foto: Jackson Bola Bantim).

domingo, 6 de outubro de 2013

Hora de esvaziar a lixeira

Há fases na vida em que o freguês lá de dentro mais parece com aqueles lixões a céu aberto que existem nas proximidades das vilas do interior, vazando sucata e espalhando sacos plásticos a tudo quanto é lado. Alimentaria ressentimentos, guardaria mágoas, frustrações, decepções; recalcaria oportunidades alegres, chances de plantar amizades, nutrir boas sementes; e o valente coração transborda o que a memória nem consegue suportar dos prejuízos e das culpas, lançando, à corrente sanguínea, rejeitos sem sentido, matéria acumulada na pouca iniciativa.

Esses tais vícios de intimidade, que preenchem a falta de abandonar ilusões perdidas e sacudir longe os restos podres das experiências, colecionam desenganos quais peças de empobrecimento da personalidade. Viram máquinas de acumular detritos em desuso.

Porém existe uma função fundamental no sistema de viver que significa o comando Esvaziar a lixeira dos programas de computador. Desinteressou a informação, numa ação rápida a máquina se livra no espaço daquilo que já lhe dera o que tinha que dar. Na linguagem dos humanos, esvazia do sistema digestivo a margem das refeições consideradas fora de aproveitamento. Aí de nós se isso não existisse.

No entanto o que se observar fica na casa da necessidade flagrante entre as pessoas, de trabalhar o tal mecanismo de limpeza, cheias de motivos que exercitaram na função de acumular troços, obesidade mórbida dos séculos de acumulação das posses transformada em poder social.
Na dependência da usura, esqueceram de expelir o desnecessário.

E os quartos de despejo costumam andar superlotados de velharias inúteis, sonhos doentes a transbordar nas taças, ferindo o organismo da natureza dos seres inteligentes. Adorar lixões e despejos parece, pois, a disposição de acumular os objetos acima das sociedades sadias.

Imperaria o vício de gastar áreas valiosas da consciência no interesse de se agarrar aos territórios perdidos sem condições de libertação daqueles tóxicos, heróis que sujeitam perde o trilho da história por causa da bagagem imensa que carregam a título de sobreviver ao Tempo.

Apetite

Ele, seu Francisco, era negociante próspero da cidade de Crato, pai de prole numerosa, homem de origem rude, porém a se destacar pela facilidade no comércio de material de construção, dominando com êxito a concorrência graças ao preço de venda de seus produtos, adquiridos direto de fornecedores pernambucanos e até paulistas, mesmo tendo para isso que fazer longas e exaustivas viagens.

Outro aspecto merecia destaque nessa personalidade: ser garfo imprudente como poucos; ganhara fama nas cercanias pela disposição no comer, a ponto de se muito difícil de achar alguém que pelo menos pudesse igualar tal propensão digestiva.

A época dos anos 50, primeira metade, apenas oferecia precárias condições de deslocamento, em fatigantes estradas de chão poeirentas. Chegar ao Sul gastava de oito a dez dias, percurso interrompido para dormida, dificultado ou bloqueado nas épocas invernosas de maior rigor.

Homem laborioso, resolveu seguir outra vez a São Paulo, por dever de ofício, a fim de abastecer a sua atividade.  

O ônibus em que seguia pernoitava nas costumeiras pensões de estrada, ponto certo dos motoristas e tradicionais usuários, servidas por gente honesta e afetuosa, tudo nos moldes daquela época.

Jantar dos melhores, pratos fartos e variados. Todos comeram bem, depois das agruras do percurso. Entretanto Chico Higino ultrapassara os limites, no cálculo das testemunhas. A dona do lugar, além de impressionada pelo excesso, preocupou-se também visto o avançado da hora.

Ao hóspede, por isso, daria tratamento particular. Armou sua rede num local de mais fácil observação, para qualquer providência, o que na verdade veio de acontecer. Os roncos que se escutavam mais pareciam estertores de agonia. 

De pronto, a bondosa senhora chamou seus empregados e, em equipe, buscou oferecer socorro ao pretenso necessitado: - Seu Chico, seu Chico, o senhor está bem? Quer um chazinho para facilitar a digestão? - falou apreensiva. 

- Só se for acompanhado de umas bolachinhas cream craker, - entre dormindo e acordado, respondeu o hóspede, deveras interessado na oferta que lhe apresentara a bondosa senhora.

sábado, 5 de outubro de 2013

Sopa de pedra (conto popular)

Tipo nascido da tradição oral, Pedro Malasartes se consagrou na memória popular pelas suas aventuras cheias de sagacidade e maestria, abrindo inspiração aos que, na vida, dispõem de poucas chances devido ao meio hostil de dramas seculares, agregados, na condição de meros figurantes da sociedade humana. De suas mais conhecidas histórias, quero contar aqui o episódio conhecido por Sopa de pedra, em que o anti-herói se apresenta arranchado sob cajaraneira frondosa, num terreiro defronte da casa de um sertanejo, em horário próximo do almoço, torno de onze do dia. 

Limpa e aceira o chão, recolhe alguns gravetos na mata, junta blocos de pedra e faz um fogo debaixo da panela de barro, onde põe água para ferver. Essa encenação foi suficiente para atrair a meninada, presença constante dessas paragens interioranas, crianças vivazes e ingênuas, quase sempre despidas e de barriguinha à mostra, de olhos ligados em tudo o que ocorre. 

Nisso, Malasartes cuidou de lavar os seixos de pedras esbranquiçados, achados nos lajedões da capoeira, a rebrilhar no sol intenso. Lavou, lavou as pedras, mergulhando-as, em seguida, na panela que aquecia a água ao fogo. E logo veio o garoto maiozinho perguntou: - O senhor que tá fazendo?

 - Fazendo uma sopa - resposta na mesma força da pergunta, - uma sopa de pedra. Os meninos se sentiram tocados pelo assunto, para eles novidade moderna. Sopa, conheciam. Mas... de pedra! Que gosto tinha aquilo? Alguém precisava aprender. Daí, como se chamados saíram rumo de casa quintal para contar a mãe. 

Conversaram baixinho; depois vierem todos para o terreiro, achegados ao visitante. - De pedra, seu Zé, a sopa do senhor? – indaga a mãe desconfiada. 

 - Sim, senhora! Quando tem com que, a gente tempera. Um salzim, coentro, cebolinha, pimenta do reino. Quando não, fica que nem agora está. Só água e pedra, que tudo tem lá o seu sabor da natureza. Tocada de compaixão pela carência do jovem, ofereceu os ingredientes, de pronto aceitos com prazer.

 - Mesmo assim, o senhor não acha que ainda é pouco? Sopa fraca, sem carne, sem galinha. Cadê a sustança? 

 - Bom, dona, quando tem a gente bota - rebateu o cozinheiro matuto. Após voltar à residência, a mulher manda vir um quarto de capão, acompanhado de uma porção de farinha.

Nessa altura dos acontecimentos, os garotos enchiam a boca d’água. O aroma do cozido já subia no ar. Tão ligados estavam que nem notaram Malasartes retirar as pedras antes de colocar no prato o alimento saboroso que acabava de preparar.

(Foto: Jackson Bola Bantim)

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Herança

Nas vastidões geladas do Ártico, em meio a naturais dificuldades, viviam pai e filho, únicos habitantes de cabana modesta, longe dos valores da civilização, num tempo em que pouco se sabia dos atuais degelos, quando se prevê outra glaciação na Terra.

Era costume do povo do lugar a existência das pessoas restrita à capacidade individual para se sustentar do necessário através da caça e da pesca, sob os rigores do clima abaixo de zero. Após a decrepitude, as famílias agiam com naturalidade depositando nas planuras desérticas idosos ou doentes sem cura, qual cumprissem a lei da sobrevivência.

Naquela casa, porém, o filho retardava a providência quanto ao pai já em fase que chegava na época do despejo, quando surgia no filho a disposição de constituir família e iniciar outro sistema de vida, restando-lhe apenas se livrar do genitor e liberar a vaga para noiva bela e intransigente.          

Mesmo admitindo aquele procedimento, o filho insistia manter em casa o velho pai, além até dos hábitos de grupo, pois não sabia justificar o que de vantagem propiciavam as tradições do lugar. Ao menos para si, no íntimo, achava certo querer consigo por mais algum tempo quem tanto sacrifício fizera na sua criação e na continuidade do lar.

Os dias prosperavam, no entanto.  A noiva nutria pelo sogro sentimentos agradáveis, os quais, todavia, diminuíam em face do instinto conjugal. Dotada de especial talento, tecera bela manta que pretendia ofertá-la quando da viagem definitiva do idoso aos penhascos gelados, em data sem muita demora, segundo planejado.

Nisso, não tardou a madrugada quando movimentos diferentes sacudiram a humilde choça. O filho atava os cães ao trenó, reuniu alguns poucos trastes, ligeiros mantimentos, e instalara o pai no meio da carga, fazendo-se a caminho.

Depois de tempestuosa jornada, se viram numa longa planície branca circundada de montanhas sombrias e ameaçadoras. Tão logo o escuro da noite principiou envolver o mundo, cumpriram a parada definitiva. Naquele sítio cinzento, dar-se-ia o desfecho da longa espera.

Sem trocarem palavras, de cabeça pendida no peito, os dois se olharam pela derradeira vez, num adeus quase primitivo, selvagem, assim podemos dizer. O ancião buscou tirar por menos, desviando-se para fora da trilha, de olhos presos na solidão, exercitando compreender o peso daquela hora. O filho refazia o que restava da bagagem; alimentou os animais e deu mostras de ter cumprido a missão, pronto para retornar. Após sacudir no espaço as dobras do relho com que tangia seus cães, de súbito ainda ouviu a voz do pai a chamá-lo:

- Filho, filho! - gritos ecoaram no vazio gelado e de suas mãos pendia a manta que a nora confeccionara. – Quero isso não, é desnecessário para mim. Prefiro que a conserves contigo e uses quando teu filho vier aqui, um dia, te oferecer ao desconhecido.

A expressão sincera do gesto foi mais do que suficiente. O moço viu-se desmoronar de todos os planos que, por muitos anos, lhe saturaram o juízo. E lívido de arrependimento, agindo com rapidez, voltou atrás; recolheu os pertences que deixara; pondo de novo o pai no lastro do reduzido veículo. Começaram a viagem que os levaria de regresso à velha casa de onde saíram.

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

60 anos do Instituto Cultural do Cariri

Durante as comemorações do centenário de elevação do Crato à categoria de cidade, em quatro de outubro de 1953 surgiu a ideia de criação do Instituto Cultural do Cariri (ICC), por iniciativa dos intelectuais J. de Figueiredo Filho, Irineu Pinheiro, Pe. Antônio Gomes de Araújo e Raimundo Girão. Sua finalidade é reunir apologistas da arte, cultura e ciência de abrangência regional, além de promotores do desenvolvimento social ambientalmente sustentável. Atualmente, o ICC conta com dezenas de associados fundadores, efetivos, efetivos acadêmicos, correspondentes, honorários e beneméritos nas secções de letras, ciências, folclore, artes e ofícios e filosofia. Entre as ações realizadas pelo ICC, destacam-se: a fundação do Clube de Amigos do Folclore, a criação do Festival Folclórico do Cariri e a promoção do Seminário de Estudos do Cariri, além da criação da Fundação Cultural J. de Figueiredo Filho, juntamente com a Prefeitura Municipal do Crato e Museu Itaytera. Atualmente, abriga rico acervo documental com a finalidade de conservação e pesquisa; mantém a publicação de seu periódico desde 1955, a revista Itaytera; realiza apresentações públicas de estudos, inclusive sobre patronos de cadeiras ou de seus ocupantes anteriores durante a posse de novos sócios; promove campanhas fortuitas de defesa dos interesses regionais; desenvolve ações de conservação ambiental, norteada pelo Projeto Soldadinho-do-araripe, incluindo um centro de visitantes e viveiro de mudas para restauração florestal; além de abrigar o Memorial da imagem e do Som, Luíz Gonzaga de Oliveira. O ICC conta com uma sede inaugurada em outubro de 2006, na gestão de Manoel Patrício de Aquino, estando situado na Praça Coronel Filemon Teles, Centro, Crato/CE, CEP 63.100-482 e telefone (88) 3523-3873. O auditório do ICC (Salão de Atos Nílton Melo Almeida) é disponibilizado para a execução de atividades culturais previamente agendadas, como peças teatrais, reuniões, palestras e lançamentos de livros. Através do diário eletrônico virtual (icccrato.blogspot.com), abrimos mais um canal de comunicação com a sociedade, dando continuidade a um novo ciclo de renovação do ICC, nos seus 60 anos de existência.
 
Atual Diretoria da Agremiação:
José Huberto Tavares de Oliveira, Presidente
Emerson Monteiro Lacerda, Vice Presidente
Francisco Huberto Esmeraldo Cabral, Secretário Geral
Roberto Jamacaru, Secretário
Weber Girão, Tesoureiro